Capítulo 4 - Amor fraterno
Depois de sair do quarto, dar-me conta da bagunça generalizada naquele apartamento: areia de gato espalhada pelos cantos - mesmo não havendo mais gato algum, já que Nicolas, um dos rapazes que algumas semanas antes ainda morava ali, tinha levado consigo Sif, um gato gordo sem raça definida e com fétida pelagem acinzentada com manchas negras - roupas de Jonatham jogadas ao longo do corredor, copos meio vazios esperando alguém que tivesse coragem de investigar seus conteúdos misteriosos, também espalhando-se por todas as possíveis bordas - fui até a cozinha, que tinha pilhas de pratos sujos e panelas cheias de sobras estragando com o calor da manhã. Rapidamente bebi três xícaras de água seguidas, para lavar minhas entranhas. Senti o líquido descendo como uma cachoeira pelo meu sistema digestivo. Veio uma ânsia de vômito repentina. Corri cambaleante até o banheiro. Abri, com um rápido golpe, a tampa da privada. Um líquido amarelo jorrou de dentro de mim. Coloquei o dedo na garganta, atingindo a úvula e encharcando minha mão direita com vômito e saliva. Vomitei novamente, sentindo meus órgãos internos queimando como se regados por algum ácido. Suspirei. Os ferimentos espalhados pelo meu corpo também ardiam.
Dei descarga, suspirando fundo. A ressaca morria com o meu amor próprio. Fui até a pia, fiz um gargarejo com a fria água da torneira - o gosto de cloro substituindo o amargo sabor do vômito.
Ao erguer a cabeça, olhei-me no espelho pela primeira vez naquele dia. Fiquei horrorizado. Meu rosto parecia desfigurado. O lábio inchara tanto, mas tanto, que parecia que eu tinha levado uma picada de marimbondo, no mínimo. Na realidade, mais parecia que eu tinha levado uma violenta surra. Meu olho direito estava muito roxo. Olheiras com cortes vermelhos enfeitavam ainda mais aquela máscara real. Meu supercílio direito estava com uma grossa camada de sangue que não secara, porém não escorria. Certamente algumas cicatrizes permaneceriam no meu rosto e na minha alma, depois que tudo mais sarasse. Eu parecia uma figura estranha, monstruosa.
Pensei em como, do dia para a noite, minha beleza tinha se esvaído. Ninguém acreditaria mesmo que eu não tivera levado uma bela de uma sova. Eu poderia inventar que fui assaltado e espancado. Mas todos os meus objetos de valor pessoal ainda me pertenciam. Não seria uma boa história de ficção.
Em todo o caso, eu estava terrivelmente feio. Fiquei ainda mais aborrecido por causa disso. Muitas pessoas antes tinham me elogiado devido minha aparência bem tratada. O uso desenfreado de álcool em excesso não tinha me estragado nisso, pelo menos. A atenção que meus brilhantes olhos azuis, meus cabelos louros penteados no estilo James Dean, meus traços germânicos bem definidos - exceto pelos lábios bem vermelhos e carnudos - não provocariam mais atração, visto que toda a atenção certamente se voltaria para a minha nova versão - desfigurada e horrorizante.
Abri a torneira, juntei as duas mãos em formato de concha, peguei um pouco de água fria - que escorria inevitavelmente pelos pequenos vãos entre os meus dedos, como Bauman descrevia o amor líquido. Joguei água no rosto. Fiz uma careta horripilante, pois aquilo causara muita ardência nas feridas. Fechei a torneira e saí do banheiro.
Voltei para o quarto de hóspedes. Nicolas ocupara aquele quarto antes, mas se retornara para casa dos pais, para economizar mais dinheiro, visto que tinha engravidado Jenifer, com quem recém começara um relacionamento. Triste história de um rapaz ingênuo. Nós éramos ótimos amigos desde a infância - estudamos juntos desde ensino fundamental, até o final da escola. Ele deixara alguns pertences no apartamento. A impressão que dava era de que tinha os esquecido propositalmente. Pequenos sacos de maconha; seda; alguns suéteres; camisetas; revistas em quadrinhos dos mais diversos gêneros; três cobertores; alguns discos; óculos escuros descoladíssimos. Óculos escuros. Eu precisava disso para esconder, na medida do possível, o meu olho roxo e os ferimentos que estampavam minha face. Imediatamente coloquei-os.
Pensei no dono dos óculos: o pobre e desajeitado Nicolas, meu amiguinho de infância agora seria papai. Se casaria com uma bela morena e viveria feliz para sempre.
Pensei em Jonatham, que roncava sinfonicamente no cômodo ao lado: com uma ótima condição financeira, por conta da herança que seu velho deixara; uma mulher no ápice da beleza juvenil; um belo carro; um apartamento grande no centro da cidade; só precisava trabalhar quatro vezes por semana - em uma empresa de monitoramento de câmeras; feliz.
Pensei em Catarine: era evidente que ela estava com quem deveria estar - nosso amor confuso estava bem assim, quase platônico, pois a possibilidade de fazê-la infeliz me atormentava sempre que ressurgiam-me lembranças sobre nossos primeiros momentos; ela estava se dando muito bem na faculdade de Design e tinha mais objetivos do que sonhos.
Pensei em Anderson Douglas: um ótimo amigo, sempre me apoiava em tudo - até mesmo nos momentos mais inconsequente que se possa imaginar; tinha pais maravilhosos, que me adoravam como um filho; estava feliz com o curso de Enfermagem e cada vez mais evoluía como músico - um projeto particular que lhe alimentava alma.
Pensei em mim: projeto de jornalista bêbado; com o rosto desfigurado; recentemente abandonado pela belíssima Sofia - por ser "agressivo"; recentemente abandonado pela gentil e bondosa Sabrina - por ser "incontrolavelmente instável"; com medo de lançar o livro de poesias que recém terminara; odiando o próprio padrasto, o próprio pai e a própria existência.
Retornei ao banheiro e me encarei no espelho novamente. Os óculos deixavam meu rosto razoavelmente tolerável de se olhar. Sem eles, minha autoestima ficaria ainda pior toda vez que visse o próprio reflexo - com turbilhões de memórias recaindo sobre mim. Usei o desodorante e o perfume que Jonatham deixara sobre a pia. Molhei os lábios, sentindo muita dor e sabendo que seria difícil comer e sorrir por um tempo - todavia, eu não imaginava quaisquer motivos para sorrir.
Saindo do banheiro, vaguei pela casa, ocioso. Encontrei um maço de cigarros quase vazio. Fui até a sacada, deixei o quente ar do dia refrescar minha pele. Olhei para baixo. Na rua, um fluxo incessante de pessoas que iam e vinham de indetermináveis lugares. Para onde iam? De onde vinham? Fiquei imaginando histórias desgraçadas, fumando lentamente.
A porta que dava para a sacada abriu-se ruidosamente atrás de mim. Eu sabia que era Jonatham, mas não virei-me. Senti um estanho medo de encarar aquele amigo que era tão querido por mim quanto um irmão.
- Como você está, lutador? - ele me disse, com a voz rouca. As primeiras palavras do dia.
- Melhor do que na madrugada passada - respondi, com a voz tão rouca quanto a dele, pois também eram as primeiras palavras que saltavam de dentro do meu diafragma naquela manhã.
- Mas é sério: esses machucados não foram por causa da briga. Foi o tombo do segundo andar, mesmo. - eu disse, em um esforço de o convencer de que eu não havia, de fato, levado uma surra. A luta que travara com meu padrasto, na madrugada que recém passara, tinha apenas deixado algumas manchas arroxeadas no meu tórax, devido os socos que ele me acertara nas costelas.
Jonatham sentou-se na cadeira que descansava ao meu lado. Suspirou. Traguei o cigarro e, soltando a fumaça pelas narinas, virei-me para encarar os olhos castanhos dele. Mesmo com os óculos escondendo superficialmente meu rosto, como um disfarce barato, vi uma expressão de susto estampar a face de Jonatham. Como todos os outros membros da família Fidelli, de origem italiana, ele tinha expressões fortes e bem características, fazendo com que não precisasse falar muito para demonstrar quaisquer sentimento.
- Você levou uma surra violenta, meu camarada. Está mesmo horrível. - disse-me sutilmente, gesticulando com as mãos abertas, apalmando o vazio do ar.
- Mais ou menos. Já estive pior. Naquela vez em que eu caí de motocicleta, por exemplo, quase morri. Mas se eu estou desse jeito, imagine como está o outro cara. Aquele desgraçado tomou o que merecia. Uma bela sova. - brinquei. Mas uma expressão séria rapidamente estampou o rosto dele.
- Você tem que parar com essas coisas. Vai acabar se matando mesmo.
- É... - respondi.
- E ainda está fumando. Você sabe parece arranjar múltiplas maneiras de tentar suicídio. Se não rápido, gradual. - ele demonstrou genuína preocupação, o que me confortou e me encheu com mais um pouco de culpa. Caroline fumava também. Cigarro era uma das coisas que Jonatham mais detestava, pois o pai dele morrera com câncer de pulmão quando ele tinha apenas treze anos. Lembro-me claramente de quando ele recebera a notícia, repassando-a para mim e para Nicolas em um frio dia de aula. Todas as vezes em que ele beijava Caroline após ela recém terminar de fumar, emitia a mesma expressão de nojo misturado ao desapontamento. Foi assim que ele me olhou. - Já não basta um vício, você tem de fumar também?
- Será meu último. É que estou muito nervoso, tentando lidar com toda a situação. Muitas coisas ao mesmo tempo. - dei a tragada final e apaguei o cigarro no cinzeiro extremamente cheio, ao meu lado.
- Acordei com uma ligação da sua mãe, na verdade. Ela disse que tentou te ligar várias vezes, sem resposta. Perguntou se você estava aqui. Eu confirmei, para não a deixar mais preocupada do que já está. Ela não estava em casa ontem à noite?
- Não, ela estava trabalhando no hospital. Só deve ter descoberto sobre a briga agora pela manhã. - expliquei.
- O você contará para ela? - perguntou-me.
- Ainda não sei.
- Melhor dizer a verdade: você chegou em casa bêbado, tarde da noite, fazendo barulho além da conta; Thomas ficou furioso por você ter acordado ele e as crianças; discutiram; ele te xingou; você o xingou; ele te empurrou; você revidou... lutaram; ele trancou você no quarto, chaveando-o por fora; desesperado, você pulou a janela, pois não queria permanecer naquele ambiente hostil. - Jonatham tinha perfeitamente memorizado a minha versão dos fatos.
- O maior problema é que ela achará que foi ele quem me machucou dessa maneira. Isso pode provocar uma crise familiar ainda maior. Se é que as coisas podem piorar - argumentei, com tolas esperanças de que ele encontrasse alguma solução.
- A melhor coisa é telefonar para ela, dizendo que passará alguns dias aqui. Quando seu rosto melhorar um pouco, você vai até lá e conversa. - era uma ótima ideia. Porém, certamente levariam alguns dias para que os machucados melhorassem.
- E a minha avó? O que ela vai pensar? - era o que mais me perturbava, além da grande possibilidade da minha expulsar-me de casa. Sempre me importei muito com os pensamentos da minha avó. Afinal de contas, morei com ela até os quinze anos de idade. Ela quem me educou. Não queria deixá-la preocupada. Além disso, ela não fazia ideia de que eu tinha qualquer tipo de descontrole com a bebida.
- Faz a mesma coisa. Espera alguns dias. Você pode ficar aqui. Te darei todo o apoio que eu conseguir, prometo. Você é meu irmão. Eu te amo. - aquelas palavras arrancaram lágrimas dos meus olhos. Me emocionei muito. Não consegui pronunciar o "obrigado irmão" - as palavras prenderam-se no nó metafórico que trancava minha garganta. Abri os braços. Jonatham levantou-se e abraçou-me forte. Um abraço longo, de mais de um minuto. As lágrimas despencavam pelo meu rosto, até molharem meus lábios, provocando ainda mais dor. Ele também chorou - um descarrego emocional rápido e silencioso, tentando fazer com que eu não percebesse.
Desvencilhou-se dos meus braços e disse-me:
- Me promete que você vai voltar a frequentar o A.A. Me promete que você vai melhorar. - pediu-me, estendendo o indicador esquerdo, apontando para o meu coração disparado.
- Eu prometo. Domingo tem reunião. Eu vou. - respondi, tirando os óculos para enxugar as lágrimas.
- Caralho, você está mesmo péssimo - disse Jonatham ao me ver "desmascarado".
- Muito obrigado - sorri, constrangido e sentindo dor.
Dei descarga, suspirando fundo. A ressaca morria com o meu amor próprio. Fui até a pia, fiz um gargarejo com a fria água da torneira - o gosto de cloro substituindo o amargo sabor do vômito.
Ao erguer a cabeça, olhei-me no espelho pela primeira vez naquele dia. Fiquei horrorizado. Meu rosto parecia desfigurado. O lábio inchara tanto, mas tanto, que parecia que eu tinha levado uma picada de marimbondo, no mínimo. Na realidade, mais parecia que eu tinha levado uma violenta surra. Meu olho direito estava muito roxo. Olheiras com cortes vermelhos enfeitavam ainda mais aquela máscara real. Meu supercílio direito estava com uma grossa camada de sangue que não secara, porém não escorria. Certamente algumas cicatrizes permaneceriam no meu rosto e na minha alma, depois que tudo mais sarasse. Eu parecia uma figura estranha, monstruosa.
Pensei em como, do dia para a noite, minha beleza tinha se esvaído. Ninguém acreditaria mesmo que eu não tivera levado uma bela de uma sova. Eu poderia inventar que fui assaltado e espancado. Mas todos os meus objetos de valor pessoal ainda me pertenciam. Não seria uma boa história de ficção.
Em todo o caso, eu estava terrivelmente feio. Fiquei ainda mais aborrecido por causa disso. Muitas pessoas antes tinham me elogiado devido minha aparência bem tratada. O uso desenfreado de álcool em excesso não tinha me estragado nisso, pelo menos. A atenção que meus brilhantes olhos azuis, meus cabelos louros penteados no estilo James Dean, meus traços germânicos bem definidos - exceto pelos lábios bem vermelhos e carnudos - não provocariam mais atração, visto que toda a atenção certamente se voltaria para a minha nova versão - desfigurada e horrorizante.
Abri a torneira, juntei as duas mãos em formato de concha, peguei um pouco de água fria - que escorria inevitavelmente pelos pequenos vãos entre os meus dedos, como Bauman descrevia o amor líquido. Joguei água no rosto. Fiz uma careta horripilante, pois aquilo causara muita ardência nas feridas. Fechei a torneira e saí do banheiro.
Voltei para o quarto de hóspedes. Nicolas ocupara aquele quarto antes, mas se retornara para casa dos pais, para economizar mais dinheiro, visto que tinha engravidado Jenifer, com quem recém começara um relacionamento. Triste história de um rapaz ingênuo. Nós éramos ótimos amigos desde a infância - estudamos juntos desde ensino fundamental, até o final da escola. Ele deixara alguns pertences no apartamento. A impressão que dava era de que tinha os esquecido propositalmente. Pequenos sacos de maconha; seda; alguns suéteres; camisetas; revistas em quadrinhos dos mais diversos gêneros; três cobertores; alguns discos; óculos escuros descoladíssimos. Óculos escuros. Eu precisava disso para esconder, na medida do possível, o meu olho roxo e os ferimentos que estampavam minha face. Imediatamente coloquei-os.
Pensei no dono dos óculos: o pobre e desajeitado Nicolas, meu amiguinho de infância agora seria papai. Se casaria com uma bela morena e viveria feliz para sempre.
Pensei em Jonatham, que roncava sinfonicamente no cômodo ao lado: com uma ótima condição financeira, por conta da herança que seu velho deixara; uma mulher no ápice da beleza juvenil; um belo carro; um apartamento grande no centro da cidade; só precisava trabalhar quatro vezes por semana - em uma empresa de monitoramento de câmeras; feliz.
Pensei em Catarine: era evidente que ela estava com quem deveria estar - nosso amor confuso estava bem assim, quase platônico, pois a possibilidade de fazê-la infeliz me atormentava sempre que ressurgiam-me lembranças sobre nossos primeiros momentos; ela estava se dando muito bem na faculdade de Design e tinha mais objetivos do que sonhos.
Pensei em Anderson Douglas: um ótimo amigo, sempre me apoiava em tudo - até mesmo nos momentos mais inconsequente que se possa imaginar; tinha pais maravilhosos, que me adoravam como um filho; estava feliz com o curso de Enfermagem e cada vez mais evoluía como músico - um projeto particular que lhe alimentava alma.
Pensei em mim: projeto de jornalista bêbado; com o rosto desfigurado; recentemente abandonado pela belíssima Sofia - por ser "agressivo"; recentemente abandonado pela gentil e bondosa Sabrina - por ser "incontrolavelmente instável"; com medo de lançar o livro de poesias que recém terminara; odiando o próprio padrasto, o próprio pai e a própria existência.
Retornei ao banheiro e me encarei no espelho novamente. Os óculos deixavam meu rosto razoavelmente tolerável de se olhar. Sem eles, minha autoestima ficaria ainda pior toda vez que visse o próprio reflexo - com turbilhões de memórias recaindo sobre mim. Usei o desodorante e o perfume que Jonatham deixara sobre a pia. Molhei os lábios, sentindo muita dor e sabendo que seria difícil comer e sorrir por um tempo - todavia, eu não imaginava quaisquer motivos para sorrir.
Saindo do banheiro, vaguei pela casa, ocioso. Encontrei um maço de cigarros quase vazio. Fui até a sacada, deixei o quente ar do dia refrescar minha pele. Olhei para baixo. Na rua, um fluxo incessante de pessoas que iam e vinham de indetermináveis lugares. Para onde iam? De onde vinham? Fiquei imaginando histórias desgraçadas, fumando lentamente.
A porta que dava para a sacada abriu-se ruidosamente atrás de mim. Eu sabia que era Jonatham, mas não virei-me. Senti um estanho medo de encarar aquele amigo que era tão querido por mim quanto um irmão.
- Como você está, lutador? - ele me disse, com a voz rouca. As primeiras palavras do dia.
- Melhor do que na madrugada passada - respondi, com a voz tão rouca quanto a dele, pois também eram as primeiras palavras que saltavam de dentro do meu diafragma naquela manhã.
- Mas é sério: esses machucados não foram por causa da briga. Foi o tombo do segundo andar, mesmo. - eu disse, em um esforço de o convencer de que eu não havia, de fato, levado uma surra. A luta que travara com meu padrasto, na madrugada que recém passara, tinha apenas deixado algumas manchas arroxeadas no meu tórax, devido os socos que ele me acertara nas costelas.
Jonatham sentou-se na cadeira que descansava ao meu lado. Suspirou. Traguei o cigarro e, soltando a fumaça pelas narinas, virei-me para encarar os olhos castanhos dele. Mesmo com os óculos escondendo superficialmente meu rosto, como um disfarce barato, vi uma expressão de susto estampar a face de Jonatham. Como todos os outros membros da família Fidelli, de origem italiana, ele tinha expressões fortes e bem características, fazendo com que não precisasse falar muito para demonstrar quaisquer sentimento.
- Você levou uma surra violenta, meu camarada. Está mesmo horrível. - disse-me sutilmente, gesticulando com as mãos abertas, apalmando o vazio do ar.
- Mais ou menos. Já estive pior. Naquela vez em que eu caí de motocicleta, por exemplo, quase morri. Mas se eu estou desse jeito, imagine como está o outro cara. Aquele desgraçado tomou o que merecia. Uma bela sova. - brinquei. Mas uma expressão séria rapidamente estampou o rosto dele.
- Você tem que parar com essas coisas. Vai acabar se matando mesmo.
- É... - respondi.
- E ainda está fumando. Você sabe parece arranjar múltiplas maneiras de tentar suicídio. Se não rápido, gradual. - ele demonstrou genuína preocupação, o que me confortou e me encheu com mais um pouco de culpa. Caroline fumava também. Cigarro era uma das coisas que Jonatham mais detestava, pois o pai dele morrera com câncer de pulmão quando ele tinha apenas treze anos. Lembro-me claramente de quando ele recebera a notícia, repassando-a para mim e para Nicolas em um frio dia de aula. Todas as vezes em que ele beijava Caroline após ela recém terminar de fumar, emitia a mesma expressão de nojo misturado ao desapontamento. Foi assim que ele me olhou. - Já não basta um vício, você tem de fumar também?
- Será meu último. É que estou muito nervoso, tentando lidar com toda a situação. Muitas coisas ao mesmo tempo. - dei a tragada final e apaguei o cigarro no cinzeiro extremamente cheio, ao meu lado.
- Acordei com uma ligação da sua mãe, na verdade. Ela disse que tentou te ligar várias vezes, sem resposta. Perguntou se você estava aqui. Eu confirmei, para não a deixar mais preocupada do que já está. Ela não estava em casa ontem à noite?
- Não, ela estava trabalhando no hospital. Só deve ter descoberto sobre a briga agora pela manhã. - expliquei.
- O você contará para ela? - perguntou-me.
- Ainda não sei.
- Melhor dizer a verdade: você chegou em casa bêbado, tarde da noite, fazendo barulho além da conta; Thomas ficou furioso por você ter acordado ele e as crianças; discutiram; ele te xingou; você o xingou; ele te empurrou; você revidou... lutaram; ele trancou você no quarto, chaveando-o por fora; desesperado, você pulou a janela, pois não queria permanecer naquele ambiente hostil. - Jonatham tinha perfeitamente memorizado a minha versão dos fatos.
- O maior problema é que ela achará que foi ele quem me machucou dessa maneira. Isso pode provocar uma crise familiar ainda maior. Se é que as coisas podem piorar - argumentei, com tolas esperanças de que ele encontrasse alguma solução.
- A melhor coisa é telefonar para ela, dizendo que passará alguns dias aqui. Quando seu rosto melhorar um pouco, você vai até lá e conversa. - era uma ótima ideia. Porém, certamente levariam alguns dias para que os machucados melhorassem.
- E a minha avó? O que ela vai pensar? - era o que mais me perturbava, além da grande possibilidade da minha expulsar-me de casa. Sempre me importei muito com os pensamentos da minha avó. Afinal de contas, morei com ela até os quinze anos de idade. Ela quem me educou. Não queria deixá-la preocupada. Além disso, ela não fazia ideia de que eu tinha qualquer tipo de descontrole com a bebida.
- Faz a mesma coisa. Espera alguns dias. Você pode ficar aqui. Te darei todo o apoio que eu conseguir, prometo. Você é meu irmão. Eu te amo. - aquelas palavras arrancaram lágrimas dos meus olhos. Me emocionei muito. Não consegui pronunciar o "obrigado irmão" - as palavras prenderam-se no nó metafórico que trancava minha garganta. Abri os braços. Jonatham levantou-se e abraçou-me forte. Um abraço longo, de mais de um minuto. As lágrimas despencavam pelo meu rosto, até molharem meus lábios, provocando ainda mais dor. Ele também chorou - um descarrego emocional rápido e silencioso, tentando fazer com que eu não percebesse.
Desvencilhou-se dos meus braços e disse-me:
- Me promete que você vai voltar a frequentar o A.A. Me promete que você vai melhorar. - pediu-me, estendendo o indicador esquerdo, apontando para o meu coração disparado.
- Eu prometo. Domingo tem reunião. Eu vou. - respondi, tirando os óculos para enxugar as lágrimas.
- Caralho, você está mesmo péssimo - disse Jonatham ao me ver "desmascarado".
- Muito obrigado - sorri, constrangido e sentindo dor.
- Eu te amo, mano. - disse-me.
- Eu também te amo, mano - respondi carinhosamente. Faziam alguns anos que tínhamos pegado o hábito de ocasionalmente declarar amor fraterno um para o outro - algo espontâneo e verdadeiro. Mesmo eu estando na pior naquele momento em questão, passou-me pela cabeça que algum dia eu retribuiria tudo o que ele constantemente fazia para me ajudar nos tempos difíceis.
- Vamos sair para comprar almoço? Comer algo saudável pode te ajudar a melhorar, tanto da ressaca, como dos machucados. - sugeriu Jonatham.
- Claro. - concordei de imediato.
Fui vestir algo mais apresentável do que a camiseta cinza rasgada no ombro direito e os jeans desbotados que me assentavam mal. No quarto de hóspedes estava a minha bolsa. Quando busquei por algumas das outras roupas que levara naquela bolsa, encontrei a garrafa de whisky barato aberta, encharcando todos os objetos. As roupas tinham mais cheiro de álcool do que o meu hálito. Recordei-me de um momento, da noite que passara, quando cheguei no apartamento: Jonatham e Anderson Douglas me pedindo para não beber mais, pois eu já me encontrava no estado mais deplorável possível. Eu ignorei no primeiro momento, pensando que a bebida ajudaria-me a não sentir tanta dor. Depois de algumas doses, percebendo que de nada adiantaria, guardei a garrafa (ainda sem tampa) na bolsa. Fiquei constrangido comigo mesmo.
Jonatham me emprestou um belo casado cáqui de veludo. Um pouco maior do que o meu tamanho, mas até que caiu bem.
Descemos até a rua. O sol queimava o asfalto. As pessoas ainda não paravam de ir e vir. Tinha um restaurante quase ao lado do prédio. Envergonhado, eu me escondia atrás de Jonatham e mascarava meu rosto com aqueles grandes ósculos escuros.
Servi-me uma farta marmita de isopor com muita carne bovina ensopada, macarrão, alface, pepino, ervilhas frescas e creme de milho.
Meu amigo serviu duas marmitas iguais. Uma delas era para que Catarine comesse quando finalmente despertasse.
Ao retornar para o apartamento, a delicada moça ruiva ainda roncava. Comi sozinho, em silêncio, pois Jonatham optou por voltar para os confortáveis braços de Catarine. Mal conseguia abrir a boca. Senti muita dor.
Depois do almoço, ainda soltando arrotos com gosto de pepino misturado com whisky, peguei todas as minhas roupas e joguei-as no chão do box do banheiro. Tranquei a porta, fiquei nu, peguei um sabonete com aroma de frutas vermelhas e o utilizei para lavar todas as vestimentas. Uma cena secretamente patética.
Quando terminei, me com vesti as roupas que antes me confortavam, peguei todo o conteúdo lavado e levei até a varanda, pingando por todo o apartamento. Estendi as roupas no pequeno varal de parede, que até então estava completamente vazio. Ao terminar, como um idiota incompetente, sequei os rastros de água com as meias que estava calçando. Fui até o quarto e deitei. Dormi. Apesar de claro, dia agora tinha se transformado em noite.
- Vamos sair para comprar almoço? Comer algo saudável pode te ajudar a melhorar, tanto da ressaca, como dos machucados. - sugeriu Jonatham.
- Claro. - concordei de imediato.
Fui vestir algo mais apresentável do que a camiseta cinza rasgada no ombro direito e os jeans desbotados que me assentavam mal. No quarto de hóspedes estava a minha bolsa. Quando busquei por algumas das outras roupas que levara naquela bolsa, encontrei a garrafa de whisky barato aberta, encharcando todos os objetos. As roupas tinham mais cheiro de álcool do que o meu hálito. Recordei-me de um momento, da noite que passara, quando cheguei no apartamento: Jonatham e Anderson Douglas me pedindo para não beber mais, pois eu já me encontrava no estado mais deplorável possível. Eu ignorei no primeiro momento, pensando que a bebida ajudaria-me a não sentir tanta dor. Depois de algumas doses, percebendo que de nada adiantaria, guardei a garrafa (ainda sem tampa) na bolsa. Fiquei constrangido comigo mesmo.
Jonatham me emprestou um belo casado cáqui de veludo. Um pouco maior do que o meu tamanho, mas até que caiu bem.
Descemos até a rua. O sol queimava o asfalto. As pessoas ainda não paravam de ir e vir. Tinha um restaurante quase ao lado do prédio. Envergonhado, eu me escondia atrás de Jonatham e mascarava meu rosto com aqueles grandes ósculos escuros.
Servi-me uma farta marmita de isopor com muita carne bovina ensopada, macarrão, alface, pepino, ervilhas frescas e creme de milho.
Meu amigo serviu duas marmitas iguais. Uma delas era para que Catarine comesse quando finalmente despertasse.
Ao retornar para o apartamento, a delicada moça ruiva ainda roncava. Comi sozinho, em silêncio, pois Jonatham optou por voltar para os confortáveis braços de Catarine. Mal conseguia abrir a boca. Senti muita dor.
Depois do almoço, ainda soltando arrotos com gosto de pepino misturado com whisky, peguei todas as minhas roupas e joguei-as no chão do box do banheiro. Tranquei a porta, fiquei nu, peguei um sabonete com aroma de frutas vermelhas e o utilizei para lavar todas as vestimentas. Uma cena secretamente patética.
Quando terminei, me com vesti as roupas que antes me confortavam, peguei todo o conteúdo lavado e levei até a varanda, pingando por todo o apartamento. Estendi as roupas no pequeno varal de parede, que até então estava completamente vazio. Ao terminar, como um idiota incompetente, sequei os rastros de água com as meias que estava calçando. Fui até o quarto e deitei. Dormi. Apesar de claro, dia agora tinha se transformado em noite.