Capítulo 2 - Memórias datilografadas




          Tumtum, tutum, tumtum, tutum. Meu coração parecia bater dentro do meu crânio. A ressaca atormentava meus pensamentos e senso de percepção. Fiquei pensando no desencadeamento situacional desenfreado que havia me levado até ali. Tentei partir do princípio. No entanto, mesmo me esforçando muito, não conseguia me recordar exatamente como tinha começado meu alcoolismo, mas eram nítidas as lembranças de como o ciclo vicioso de bebedeiras emendadas tornara-se o eixo central no qual minha vida girava entorno - um niilismo altamente destrutivo que sustentava-se no preenchimento do vazio com a escrita e o consumo de álcool para o estímulo do corpo e da mente. Quando eu tinha dezessete anos, estava no último ano da escola e trabalhava como estagiário em um escritório de advocacia. Minha mãe me conseguira o emprego, pois enxerga em mim a total falta de esperança, caso não trabalhasse em um empreguinho que ela considerasse decente. O sonho dela era que eu me tornasse um funcionário público e vivesse o resto da vida em uma rotina de ir para o escritório e voltar para casa para dormir pensando no tal escritório até voltar para lá no dia seguinte. Claro que ela só queria me livrar de mim e imaginava que esse tipo de rotina me significaria mais do que a infelicidade disfarçada de comprometimento rotineiro. Tudo o que eu consegui comprar com o meu primeiro salário foi um lanche, uma máquina de escrever e uma garrafa de whisky barato - o melhor de tudo foi que o velho da mercearia sequer pediu-me um documento que comprovasse maioridade.
           Então começou. Eu ia para a escola de manhã, carregado de manuscritos para revisar, sem me importar com nenhuma das aulas - sempre fora um aluno desinteressado, porém com notas razoavelmente boas; trabalhava durante a tarde, prestando o mínimo possível de atenção nas tarefas - e eu não aprendi absolutamente nada no ano em que estagiei naquele escritório; durante a noite a coisa acontecia: eu bebia wiskhy com água gelada enquanto escrevia contos e poesias de qualidade literária abominável. Aquilo virou rotina.
           Não tivera amigos na escola. A turma toda que andava comigo nos momentos de farra era de outro colégio. Eu os conhecera no ensino fundamental, mas como as famílias deles tinham mais dinheiro do que a minha, que também era um tanto caótica, cursaram o ensino médio em uma instituição cuja mensalidade nem os meus avós, nem a minha mãe podiam pagar. Meus desajustados momentos eram gastos escrevendo e lendo livros que alguém com a idade que eu tinha não deveria ler.
            Foi exatamente no dia em que me formei, que eu simplesmente desisti de quaisquer possibilidades de sustento que não fosse para a área da escrita. Passei os meses seguintes revezando meu tempo entre sair com os meus amigos ou ficar trancado no meu quarto me embebedando e escrevendo bobagens. Até que recebi a notícia de que eu havia sido aprovado para cursar Jornalismo na universidade do Estado. Eu escolhera aquele curso, pois era o que mais se aproximava do que eu mais fazia - escrever, escrever, escrever, escrever.
             Comecei os estudos no período noturno. De forma instintiva, pela primeira vez, dediquei muitos esforços para estudar. Eu bebia e escrevia durante o dia inteiro e frequentava as aulas de segunda à sexta, das sete às dez e meia da noite.
             Em um certo domingo, com o sol castigando meus cabelos louros cuidadosamente penteados para trás, eu lia o jornal, como de costume, quando me deparei com um anúncio:

"Curso de Criação Literária - aulas sobre Literatura e métodos de escrita criativa. Para participar, basta ter uma carta aprovada pela avaliadora, que pode ser enviada para o endereço abaixo:"

          Apressadamente larguei o jornal, me servi um drink e fui até a máquina de escrever. O melhor que eu consegui pensar, foi uma breve descrição da minha história com a escrita. Naquela carta estavam quase todas as lembranças que eu tinha da minha infância. Reli e reli e reli repetidas e incontáveis vezes antes de enviar. 

"Cara professora/avaliadora -  seja lá qual for a sua função, precisamente -,
a minha relação com a poesia, com a literatura, com a voz... com a arte em geral - falando em termos de criação -, é bastante antiga, e um tanto conturbada. Eu escrevo poesias todos os dias, escrevo dois ou três contos por semana... e arrisco cantar alguma baboseira quando a vontade é mais do que a preguiça - que funciona como uma membrana, para mim. Entretanto, antes de de explicar as sentenças anteriores com uma maior profundidade, sinto que devo adiantar alguns fatos sobre mim - já, também, deixando claro, caso não for de seu conhecimento, que o termo "fatos verídicos" já não é mais um pleonasmo, visto que há alguns anos o Mundo, esse grande mentiroso compulsivo, vem nos mostrando que "fatos" podem ser inventados e desconstruídos - os quais cabem à você acreditar ou não:

          Eu sou sujo. Mesmo se eu lavar-me até ficar totalmente irreconhecível por conta de rugas cheias de água morna, eu continuarei sujo. Mesmo polido, eu continuo sujo. E minha escrita também, apesar de rebuscamentos bobos alçados sobre ela, como máscaras, é suja. Também, além disso, sou vários personagens ao mesmo tempo - fragmentos tirados dos meus devaneios, delírios vindos dos mais diversos estados de consciência. Eu posso ser o herói; eu posso ser o vilão; ou, como eu geralmente prefiro, ser uma mistura imprevisível das duas (algo que se parece com uma anti-herói, mas de um modo menos romântico).

        Eu sou um gênio... Mas só eu sei disso - provavelmente algum beberrão já deve ter dito isso por aí, mas não o culpo por ter uma loucura que se assemelha com a minha. Eu sempre soube que sou um verdadeiro gênio... observador e que vomita metáforas até quando está há dois dias com o estômago vazio. Algumas pessoas já me disseram que reconhecem minha genialidade: mas eu disse para todas essas pessoas, uma de cada vez, que são todos uns mentirosos!

          Sou um desgraçado - apesar de gostar de admirar sorrisos alheios como se fossem quadros renascentistas, na maior parte do tempo. Eu convivi tempo demais com egoístas, com filhos das putas, e com ladrões - além, é claro, dos mentirosos que me chamaram de gênio. Me tornei esse desgraçado que hoje sou, pois não queria ficar sorrindo até os músculos do meu rosto se cansarem. Também por não querer me tornar um egoísta, nem um filho da puta, nem um ladrão, nem um mentiroso. Eu sou só alguém que gosta de ler, mas que gosta mais ainda de escrever. Cresci preguiçoso, loiro e covarde. Sou um suicida que tem preguiça de cometer a barbaridade de zerar as minhas contas com o Mundo - que além de mentiroso, é um cobrador insistente. E por ser um suicida, sou um covarde. Tudo bem. Então, acabo simplesmente por aproveitar a vida como ela me permite.

           Não deixe-se enganar: não sou niilista, mesmo que, ironicamente, todas as palavras que brotam das pontas dos meus dedos girem e sempre retornem ao tão grandioso e descomunal "nada".

           Dentre tantas besteiras que podem assustar em um primeiro julgamento, aqui vai um bom fato sobre mim: sou o melhor poeta de minha geração.

          Agora que o caminho, e o desenvolvimento já atingiram o ponto em que é possível que eu descreva o meu relacionamento com a poesia, o farei.

           Na minha vida, eu tive algumas amantes, até agora. As minhas duas primeiras ainda flertam comigo, e, recorrentemente deitam-se com suas cabeças sobre o meu peito, acariciando a cabeça que aninha meu cérebro boboca, porém criativo. Essas duas me enlouquecem, assim como as suas antepassadas enlouqueceram os grandes artistas.

          Ambas são pedófilas que moldaram meu modo excitante de ser, de dizer as coisas.

          Minha primeira amante foi a Solidão. Ela quem se apresentara  à mim em tempos tão empoeirados e antigos à minha memória - já um um pouco deteriorada, sequelada - que já não lembro-me exatamente quando, quantitativamente falando. A minha lembrança mais antiga é a de quando uma minúscula versão de mim - um personagem que já morrera  há alguns atos - trancando-se em um quarto  tão pequeno que era proporcional ao meu tamanho, e que tinha paredes azuis, e cheirava como baganas velhas... os outros garotos pequeninos brincavam lá fora, desferindo uma gritaria efervescente enquanto seus pés queimavam no asfalto... um bêbado grunia torto, acariciando a sua barriga velha, peluda e nua. A Solidão pulou a minha janela, silenciosa, e começou a acariciar meus cabelos loiros e finos, enquanto sussurrava com a sua voz bonita (o único adjetivo que eu sabia na época) em meus ouvidos histórias sobre o que as outras crianças gostavam de fazer quando não estavam na escola. Ela me fazia querer contar todas aquelas histórias.  A Solidão me abraçou nos tempos em que eu achava que a África era um país; que Joseph Stalin era um comediante; que Adolf Hitler era só um coitado pintor alemão que não conseguira vender os seus quadros; que meu pai me amava de verdade... Ela fora a minha musa inspiradora, que fez-me corrigir essas informações, e aprender a ler as obras dos Grandes. Uma clássica mulher machadiana que não mudara muito com o passar dos anos: atraente, enlouquecedora, viciante.

           Fora a Solidão quem me apresentara, ainda muito cedo, uma de suas melhores amigas: uma figura já que já havia se deitado com muitos homens, e se chamava Poesia - sempre achei um lindo nome; me lembra gemas moles de ovos fitos, por sua simplicidade, contraste e beleza saborosos.

           Desde então, nós três cultivamos uma relação bastante aberta, que a maioria das pessoas costuma chamar de "vida" - não sei como chamar, ainda. E, essas duas se dão bem com o fato de termos esse amor maravilhoso, em um dado ponto em que uma só fica feliz se a outra está presente. Assim, elas falam, incansáveis em meus ouvidos! São elas quem testemunham eu datilografar meus poemas tortos e cheios de adjetivos sujos, em minha máquina velha e verde - com uma tecla (¹1!) faltando.

Espero que você, cara professora/avaliadora, entenda o quão importante é minha relação com a Poesia, com a Solidão, com a Arte... com as minhas amantes - as quais não vou citar todas nesta carta. E espero que aceites que o melhor e mais sujo personagem/escritor dessa geração faça parte de seu grupo. Se não, tudo bem.

PS: Desculpe não revisar o que foi escrito acima. A preguiça é grande... e como uma série de espirros, tudo foi-me, simplesmente expelido. Obrigado.

Atenciosamente:
Bill Staffel"


             Haviam muitas verdades naquela carta. Minha infância, de fato, não havia sido das mais fáceis. Meu pai, tão bêbado quanto meus dois avôs, deixou-se desaparecer pelo mundo quando eu ainda era apenas um bebê - reaparecendo quando no meu décimo oitavo aniversário. Minha mãe era jovem demais quando eu nasci, tinha apenas dezessete anos - por isso, foi trabalhar em qualquer área em outra cidade, já que naquela cidadezinha não haviam oportunidades para os jovens da época. Meus avós me criaram e, quando eu completei 15 anos, minha mãe subitamente reapareceu dizendo que estava se casando e que me levaria para morar com ela. Não havia escolha contrária. Nunca me dei muito bem com ela. Muitíssimo menos ainda com Thomas, o meu padrasto. Carregada com o meu prematuro desajuste social, aquela carta dizia muito sobre a minha real personalidade.
            Surpreendentemente ou não, eu fui aceito. Mas não compareci a nenhuma aula. 
            Consideravelmente rápido, depois de apenas três semestres cursando Jornalismo, consegui emprego no IDiário. Foi muita sorte ter meu currículo aceito. "ROMANCISTA", estava datilografado na primeira linha da minha descrição curricular. Fui aceito por conta dessa pequena grande mentira. Finalmente conheci Marcus, o grande editor carrancudo de cabelos grisalhos e lábios trêmulos. Um homem que, apesar de se mostrar gentil, sempre foi rigoroso e exigente. Rapidamente tive de readequar minha rotina de autodestruição gradativa. Não foi muito difícil. Incontáveis ressacas já me atormentavam e muitas certamente ainda viriam.
           Tudo aquilo se estendera naturalmente até a fatídica noite em que eu me jogara do segundo andar, caindo de cara em uma fria e suja calçada de pedra.
           Era terrivelmente devastadora a ressaca que eu senti ao me levantar na primeira manhã da minha estadia no apartamento onde Jonatham e Catarine moravam Todas essas lembranças martelavam minha cabeça. Foi a pior ressaca da minha vida. Confusão mental. Muita dor nos ferimentos que se desenhavam, horrorosos no meu corpo fragilizado. Muita dor castigava a minha incrédula jovem alma e eu não tinha ideia de como começar a resolver toda aquela caótica situação. Era melhor parar de pensar no passado, pelo menos um pouco, para tentar vislumbrar as múltiplas possibilidades para o futuro.

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