Capítulo 6 - A primeira reunião
Acendendo um cigarro no outro, me desvencilhando da massa pulsante que acompanhava as luzes do centro da cidade, olhando nervosamente todas as vitrines, todos os sonhos e rostos deformados pelo tempo, caminhei nervosamente até aquele local até então desconhecido. Cumprimentei com a cabeça mais ou menos meia dúzia de rostos que se desfaziam em fumaça aos meus olhos, assinei um nome fictício em um caderno que me fora apressadamente apontado - não era o nome que eu gostaria de ter algum dia assumido, mas parecia-me bacana e tão facilmente esquecível, que agora já nem mais recordo-me de sequer uma sílaba.
Me sentei. Acendi outro cigarro, quando o antigo já queimava-me a ponta amarelada dos dedos da mão esquerda. Eu realmente precisava estar ali? A culpa me dizia "sim".
Então eles começaram. Homens contavam as suas histórias freneticamente. O irônico é que, mesmo com a bondade brilhante no fundo dos olhos tristes de cada um, nenhum deles era nem herói, nem vilão das próprias histórias.
Eram narrativas escatológicas. Não me lembro tão bem, só de alguns detalhes de algumas - como, por exemplo, daquele cara utilizando um sobretudo tão pequeno para o seu tamanho, que mais parecia uma fantasia mal arranjada, e ele contando que bebera a própria urina, para saber se daria algum barato adicional, quando já não tinha sequer um tostão furado nos bolsos.
Um dos homens era bem velho, com traços físicos germânicos, se vestia muito bem - com terno azul perfeitamente arranjado e com riscas brancas elegantíssimas, sapatos engraxados em excesso e calças combinando. Ele falava muito, muito alto, com uma voz tão marcante, que até agora parece ecoar na minha mente. Sussurraram baixinho, atrás de mim, comentando que, quando jovem, ele costumava ser um grande jornalista que conhecera pessoas muito importantes, sem perder a elegância nem quando urinava-se diante delas. Não fosse a desenvoltura e oralidade impecável, me fazia lembrar de mim mesmo, em um possível futuro distópico. Mas eu pensei, diante desses devaneios, que se eu não queria estar ali aos 20 anos, quiçá beirando os oitenta. E a culpa martelava minha mente no ritmo abstinente das batidas internas do peito.
Eu não conseguia me concentrar tanto nas histórias, pois estava pensando em toda a minha precoce trajetória - no que me levara até ali senão pela carga niilista deturpada e os então recentes bombardeios de acontecimentos desconcertantes.
Quando todas as quase vinte pessoas terminaram seus depoimentos, o senhor magricela que mediava o peculiar encontro olhou diretamente para mim e disse:
- Seguindo nossa tradição, prestigiamos os visitantes. As pessoas mais importantes desta reunião. Você, meu rapaz, saiba que você é a pessoa mais importante aqui, nesta noite. Se tiver vontade de contar a sua história e/ou até fazer parte do grupo, pode se levantar e vir até aqui, se apresentar e certamente lhe acolheremos com todo o carinho possível. - tudo aquilo me confundiu. Com todas as minhas revoltas particulares, uma situação enervante e pensamentos sobre as múltiplas possibilidades, os segundos que se seguiram, para a tomada de decisão, foram daqueles tão clichês, que parecem estenderem-se por uma fenda indeterminável de tempo... mas eu fui.
Com um acanhado triunfo, me levantei e percebi que aqueles rostos agora estavam tomando forma na minha cabeça. Que aquelas pessoas pareciam tão reais quanto eu. Caminhei em passos tortos até o pequeno palanque negro onde os depoimentos eram narrados e falei, falei, falei, falei... contei sobre como nem me lembrava como tudo tinha começado, assim como não se pode lembrar do choro do nascimento; falei das noites se transformando em dias enquanto eu datilografava freneticamente, com o sol que passava pelo rasgo na cortina queimando meus neurônios etílicos; falei sobre como as ruas, os automóveis, as pessoas, tudo parecia-me literatura encenada pela ironia vital - Deuses brincando conosco, como se fôssemos marionetes; sobre como todo o futuro ao meu redor era tão limitadamente grandioso, até enfim falar no término de relacionamento que me fizera sentir culpa o suficiente para me sentar diante de todos aqueles estranhos familiares - que pareciam distorções do que acontecera e/ou poderia vir a acontecer comigo. Mencionei o horror azul nos olhos da moça que eu tanto amava, com o amor evaporando com o etanol que eu expedia pelos poros enquanto a segurava raivosamente pelo braço, machucando-a, sem saber quem ela era e quem eu era (?). Quem eu era? Mais do que um nome falso em um caderno cheio de nomes falsos? Um personagem antagônico na minha própria história? Eu certamente não era a pessoa mais importante ali, pois era como todos os outros.
Quando terminei de gaguejar aquela narrativa de ascensão e queda, todos me aplaudiram. Mas não havia motivo para aplaudir, exceto pela minha falsa coragem em expor tanta inconformidade, tantas inconstâncias que giravam no eixo de um mundinho particular movido pelo álcool.
Escolhi aleatoriamente, a pedido do tal mediante magricela de cabelos acinzentados, uma espécie de padrinho, alguém dali que cuidaria de mim quando os males assolarem meus mesquinhos pensamentos. Parecia-me, no entanto, impossível. Escolhi um senhor de olhos tão claros quanto os meus, que usava um chapéu bacana e portava uma bengala - Augusto, dizia chamar-se. Mas eu não sabia se aquilo era verdade. Nada me parecia verdade - nem eu mesmo ali em pé, diante daquelas pessoas tão calorosas. Eu era só um garoto junto deles. Por isso mesmo, senti ainda mais forte o clima de pena disfarçada de compaixão. O nervosismo estava tomando outra forma no meu entorno. Ele caminhou até onde eu estava, me entregou uma espécie de ficha amarela, que simbolizava meu mérito de ser a pessoa mais importante naquela noite, por ter culhões suficiente para despejar todas aquelas palavras diante deles. Espetáculo. A sociedade do espetáculo. Aquele era, no entanto, um dos mais melancólicos possíveis.
Augusto me disse, carinhosamente repousando a mão no meu ombro esquerdo:
- Não pense em não beber nunca mais. Pense em não beber hoje, Amanhã, pense que não beberá amanhã. E assim por diante. É uma maneira de recortar o problema e o deixar mais palpável. - eu realmente concordei. Parecia tão mais fácil prometer, no começo de cada dia "só por hoje, espero não beber". Eu já tinha feito tantas promessas pateticamente frustradas, que aquela me parecia uma mais fácil de cumprir. Concordei com a cabeça, pois as minhas palavras tinham se esgotado nos montes de histórias confusamente caóticas que eu contara ali. Todos aplaudiram. Eu me senti, só por alguns segundos a pessoa mais importante ali.
A reunião acabou e fiquei pensando em todas aqueles momentos tornando-se tão memórias quanto os bons e maus momentos que passara ao lado de Sofia. Por onde estariam esvoaçando aqueles cabelos louros? Era tão incerto quanto a minha sobriedade no dia seguinte.
No entanto, ao despertar dos sonhos mais kafkianos possíveis, fiz, no início do dia que seguiu-se após aquele, a promessa:
- Hoje eu não beberei. - disse, encarando-me no espelho, decidindo quem eu seria naquele dia.
Tivera um expediente conturbado - as dores de cabeça desconcentrando meus raciocínios - três reportagens escritas, porém duas censuradas pelo tom indesejável dos fatos. Introspectivo, sai para o ar da noite, respirando nicotina e mastigando a doce culpa. Meu estômago cantava mais do que o rádio.
Caminhei até o local da reunião. Foi mais do mesmo. Muitas histórias, muito sangue. Automutilação. Tudo era assim, na verdade. Dessa vez não me falaram que eu era o mais importante da noite. Eu saí antes do fim, antes de ser chamado, contando todas as minhas histórias para mim mesmo.
Fui até o cineclube, ali perto. Assisti um filme francês horrível. Era tão horrível quanto as narrativas que eu poderia ter ouvido se tivesse permanecido na tal reunião.
De fato, eu não era importante. Mas quem era, afinal?
No dia seguinte, prometi novamente. Cumpri. Nos dois dias que se seguiram, a mesma coisa. No entanto, invés de ir à reunião, optara pela boa e velha arte, assistindo aos filmes do cineclube.
Até que um dia eu me esqueci de todas as promessas que já tivera feito na vida. Desconcerto total.
Não faz mal. Amanhã é um novo dia. Sempre é tempo de recomeço... até no fim.