Capítulo 1 - Queda livre
*
Os sussurros vindos do quarto ao lado atravessam as paredes amareladas pelo tempo e pelas luzes da madrugada que parecia se arrastar para além da minha percepção normal daquele tempo. Eles provavelmente achavam que eu não conhecia ouvi-los, ou que me encontrava adormecido pelo cansaço provocado pelos turbulentos acontecimentos daquela estranhamente fria noite de verão. Devido a minha embriaguez incontrolavelmente selvagem, a friagem só parecia afetar as pontas arroxeadas dos meus dedos pálidos e fazia os ferimentos espalhados pelo meu corpo doerem um pouco mais.
- Você não pode continuar cuidando daquele idiota para sempre, Jonatham. Ele já tem 20 anos e precisa começar a lidar com os próprios problemas sozinho. Mas ele é maluco. Não é possível você socorrê-lo sempre que ele fizer alguma besteira inconsequente ou quase se matar. Se continuar assim, será pior tanto para ele, quanto para você. E eu também não aguento mais esse tipo de coisa... esse bêbado idiota cambaleando de um lado para outro aqui no meu apartamento. Não dá para continuar desse jeito. Você não pode proteger o Bill para sempre. - Caroline tentava sussurrar, mas seu desdém fazia com que as palavras saltassem do fundo do diafragma com força desproporcional, ecoando pelos cômodos o suficiente para que se pudesse ouvir cada sentença de qualquer cômodo da casa em que se estivesse. Era tudo tão patético. Ela estava certa: Jonatham não podia mesmo me salvar de todas as enrascadas em que eu me metesse. E ele também tinha toda certeza disso, mas era um amigo bastante esforçado e preocupado. Quase um irmão. No entanto, talvez não fosse o momento mais apropriado para se falar daquele assunto, pois todos já se sentiam o suficientemente mal com a situação caótica que se passava.
- Mas eu não poderia deixar o meu melhor amigo passar sozinho por tudo isso. Não poderia deixar de abrigá-lo, ainda mais do jeito que está, todo machucado. O cara quase empacotou de vez. Duvido que ele tenha mesmo caído do segundo andar. Deve ter mesmo é apanhado uma surra. Imagina... o Thomas tem o dobro do tamanho dele. É uma situação delicada demais. - respondeu Jonatham, demonstrando toda a mais pura compaixão que sentia por mim.
Enquanto os ouvia, múltiplos pensamentos se confundiam na minha mente intoxicada pela loucura etílica. Eu pensava que ninguém acreditaria mesmo que eu bati no desgraçado do meu padrasto, que realmente tinha o dobro do meu tamanho e que aquele gorducho tinha desistido da briga depois de levar um bom sopapo no lado esquerdo da face e alguns chutes no peito que tiraram-lhe o fôlego. E que eu fiquei tão nervoso em permanecer naquela casa, que rapidamente coloquei, na minha bolsa de couro negro, todo o tipo de objetos que julgara essenciais para sobrevivência temporária - uns pares de meias e cuecas, dois agasalhos quentes, uma calça jeans azul, escova e pasta de dentes, perfume, meu exemplar de A Sangue Frio do Truman Capote, lápis, bloco de notas, algumas folhas de papel e meia garrafa de whisky vagabundo (que, sem eu perceber, devido tamanha euforia nervosa, estava destampada e molhara todas as outras coisas). Desesperado e gaguejando as palavras que se enroscavam na minha língua, telefonei para o Jonatham, implorando que viesse me buscar de carro. Então, eu pulei da janela do segundo andar e caí de cara no chão. Meu rosto se arrastara pela calçada. Minhas calças jeans se rasgaram na altura dos joelhos e a camiseta perdera um naco de tecido cinza.
Quando Jonahtam chegou eu estava parado na esquina de casa, bebendo o whisky direto da garrafa, deixando o prazer provocado pela adrenalina em excesso escorrer pelos meus lábios inchados. O sangue escorria aos montes pelo meu supercílio aberto, por um ferimento abaixo do meu olho direito, pelo meu lábio inferior perfurado - eu o mordera involuntariamente ao bater com o rosto no chão -, pelos meus dois joelhos e pela fenda aberta na palma da minha mão direita - que fora inutilmente utilizada como apoio para reduzir o impacto da razoavelmente alta queda.
Conforme me foi dito pelos amigos que vieram me buscar de carro, foi assustadoramente chocante observar as luzes dos faróis quebraram a escuridão da madrugada iluminarem minha figura maltrapilha e ensanguentada, escorada no muro da casa daquela esquisita casa de esquina - diante da qual eu passara incontáveis vezes observando cada detalhe possível, transformando em literatura imaginária, reparando nos aromas, clima, pessoas, animais, o cintilar de luzes foscas e a multiplicidade dos sonhos que se esvoaçavam pelos ares a cada passada, a cada sobreolhada. Eram quase quatro da manhã.
Anderson Douglas também estava no carro de Jonatham. Ele era o meu outro dos meus melhores amigos. Com seu metro e oitenta de altura sustentados nos engordurados quase cento e vinte quilos, ele tinha cabelos e barba em formato de caracóis amarronzados, quase da mesma cor dos olhos. Estudava enfermagem e tinha personalidade forte e complexa - um humor ácido que certas vezes cortava-se repentinamente pela profunda melancolia existencial - e um grande senso de proteção. Ele quem me ajudara a tratar dos ferimentos, em uma rápida parada que fizemos na residência em que compartilhava com os amáveis pais.
Às cinco, ainda com a densa escuridão enfeitando os céus, eu já estava no apartamento onde Caroline e Jonatham moravam na época - um apartamento bem grande, com três quartos, dois banheiros, cozinha, sala, área de serviço, varanda e um clima retrô gerado pelas lâmpadas de brilho amarelado e o desgaste das paredes que um dia foram brancas. Eu já estava quase completamente limpo, exceto pelos rios de plasma impuro e vermelho que persistiam em escorrer pelo meu rosto inchado e abatido. Anderson Douglas já nos deixara, pois estava cansado e embriagado. As palavras sussurradas pelo casal no quarto ao lado pareciam-me quase gritadas, pois meus desregulados sentidos corporais aguçaram-se involuntariamente devido ao forte impacto emocional. A solidão daquele quarto de hóspedes aos poucos ia se intensificando junto ao frio. Jonatham e Caroline estavam tão insones quanto eu. Em consequência daqueles agitos noturnos, não cessaram a conversa antes que amanhecesse.
Continuaram a conversar, utilizando-se daqueles agonizantes sussurros forçados sobre pena, dor e sobre como eu estava gradativamente jogando no lixo o meu futuro, que certa vez se apresentara tão incomensurável e brilhante como o sol de veraneio. Caroline não deixava de relembrar o namorado de todo o risco do futuro dele e, consequentemente dela também, ser desperdiçado se ele continuasse sendo tão bonzinho comigo - um alcoólatra inconsequente que o acompanhara desde os tempos de imaculada inocência infantil. Saltavam, descontrolados na minha mente, intercalando-se, fragmentos de memórias dos vários anos pelos quais nossa amizade se estendera.
- Vamos deixá-lo ficar aqui conosco, por enquanto. Só por alguns dias, até que as coisas se estabilizem, pelo menos um pouco, na casa dele. Não podemos deixar o Bill desamparado. - gentilmente disse Jonatham.
- Mas e se ele não conseguir acertar as coisas por lá? E se for banido definitivamente da casa da mãe e não conseguir um outro lugar para morar, até que finalmente desista de procurar e fique aqui, enchendo a cara dia e noite, noite e dia, fingindo ser escritor, falando besteiras sem fim, comendo toda a nossa comigo, bebendo toda a nossa bebida, quebrando as coisas... você sabe que isso tem um grande possibilidade de acontecer. Além disso, o Bill precisa crescer, Jonatham. Ele não pode continuar nutrindo essa realidade de ter um mundinho particular. Vai acabar se frustrando tanto na vida, que jamais será possível se reerguer. - respondeu a moça, me causando confusão mental, pois eu não sabia se ela estava pensando com um involuntário egoísmo latente, ou se estava genuinamente preocupada com o destino tanto meu, como deles.
- Está bem, está bem. Mas tenta conversar com ele amanhã. - ela disse com um denso suspiro servindo como ponto final para a sentença.
- Hoje. - ele corrigiu, abobado.
O silêncio que seguiu-se, tão agonizante para mim quanto o latejar do inchaço do beiço ferido, só fora perturbado pelas vozes nos sonhos magníloquos do meu repentino adormecer. Sonhei com o que ocorreria após o meu indesejado despertar: a fictícia história de acidente que eu narraria para o meu carrancudo patrão, Marcus, pois seria bastante embaraçoso trabalhar com aquele horrendo aspecto. Pensei em dizer que sofrera, novamente, um acidente de motocicleta. A minha desconstruida figura inserida no sonho logo percebeu que aquela era uma história idiotamente inapropriada para se contar, pois seria uma grande besteira, já que eu pareceria mais inconsequente ainda, visto que os ferimentos do rosto denunciariam a falta de capacete. Decidi por dizer que me levantei no meio da madrugada, afim de ir ao banheiro, e, na densa escuridão noturna despenquei acidentalmente da escada, completando a quebra com uma batida com o rosto no último degrau.
Não foi um sono longo. Acordei já pensando em como transmitir aquela mensagem ao meu patrão. Certamente ele ficaria bravo, sem nenhuma compaixão, já que era uma sexta-feira, o dia mais movimentado na Redação. Ninguém assumia o meu lugar, na editoria de jornalismo cultural, durante o final de semana.
Jonatham e Caroline ainda dormiam pesadamente no quarto ao lado. Eram quase onze horas da manhã. Eu já deveria estar me encaminhando para o trabalho, visto que meu horário se estendia do meio-dia às oito da noite. Aquilo o enfureceria ainda mais.
Pensei em escrever, mas essa era a opção mais demorada, o que certamente pioria ainda mais toda a situação. Telefonei e contei a história da queda da escada. Depois da conversa de quase três minutos ao telefone, mais uma dor me incomodava: no ouvido esquerdo, por conta de ter ouvido uma enxurrada de palavras de Marcus, que finalmente cedera, me desejando despreocupadas melhoras. Ele confiava em mim, pois durante todo o período de até então um ano e dois meses em que eu trabalhava para o IDiário, mesmo com todas as diversas instabilidades amalucadas da rotina de etilista profissional, eu jamais o desapontara significativamente e exalava simpatia a cada sorriso que amigavelmente distribuía para ele e para os colegas - também pelo fato de eu ser apenas um garoto esforçado ali naquele ambiente jornalístico.
Feito o contato, eu não conseguia imaginar por onde começar a resolver os demais problemas. O que eu estava fazendo? O que eu poderia fazer? Tudo perdera o encanto e soava literatura trágica. Escrevi mentalmente, por instinto, o seguinte poema, por não saber mais exatamente o que fazer:
a única realidade
nos dias que se estendem
até a eternidade
é o vício.
vantagem, chantagem,
coragem para o autossacrifício...
[...] tristeza e felicidade.
tudo isso é vício.
até a liberdade
que é só uma utopia dos livros
- ciclo sem término.
também o negro e branco.
vício é ganância.
e tudo é tão confortável,
naturalmente tolerável,
que se torna essência.
Nenhuma poesia serviria como solução. Busquei nos meus pensamentos embaralhados alguma referência literária que pudesse me amparar naquele momento de crise pessoal. Nada. Entretanto, como dissera Caroline, eu gostava de fingir ser um escritor. Pensei carinhosamente no que já faziam mais de dois anos desde que eu abandonara quaisquer outra possibilidade de sustento que não fosse escrevendo. Literatura não resolveria os meus problemas, apesar de tudo.
Era hora de pensar a atitude mais razoável possível a se aderir. Tinha de deixar a inconsequência perder-se nas lembranças, mesmo que por um tempo. Primeiro, no entanto, tentei buscar nos confins da minha mente o que me fizera adentrar por caminhos vitais tão estreitamente claustrofóbicos. Pensei no meu passado, no meu presente e na enevoada nuvem que se exibia na janela, encobrindo o brilho solar. O calor enfim chegara. Pássaros assobiavam instintivas canções de amor e ódio. As buzinas soavam como um coro, lá embaixo. Treze andares me afastavam do solo. Me levantei e olhei pela janela. Imaginei-me despencando do parapeito, voando brevemente no ar da manhã até aterrissar no calor da morte que queimava o asfalto negro. Mas não havia muita vida para tirar do meu âmago. A indecisão parecia mais densa do que uma tempestade de verão.
Conforme me foi dito pelos amigos que vieram me buscar de carro, foi assustadoramente chocante observar as luzes dos faróis quebraram a escuridão da madrugada iluminarem minha figura maltrapilha e ensanguentada, escorada no muro da casa daquela esquisita casa de esquina - diante da qual eu passara incontáveis vezes observando cada detalhe possível, transformando em literatura imaginária, reparando nos aromas, clima, pessoas, animais, o cintilar de luzes foscas e a multiplicidade dos sonhos que se esvoaçavam pelos ares a cada passada, a cada sobreolhada. Eram quase quatro da manhã.
Anderson Douglas também estava no carro de Jonatham. Ele era o meu outro dos meus melhores amigos. Com seu metro e oitenta de altura sustentados nos engordurados quase cento e vinte quilos, ele tinha cabelos e barba em formato de caracóis amarronzados, quase da mesma cor dos olhos. Estudava enfermagem e tinha personalidade forte e complexa - um humor ácido que certas vezes cortava-se repentinamente pela profunda melancolia existencial - e um grande senso de proteção. Ele quem me ajudara a tratar dos ferimentos, em uma rápida parada que fizemos na residência em que compartilhava com os amáveis pais.
Às cinco, ainda com a densa escuridão enfeitando os céus, eu já estava no apartamento onde Caroline e Jonatham moravam na época - um apartamento bem grande, com três quartos, dois banheiros, cozinha, sala, área de serviço, varanda e um clima retrô gerado pelas lâmpadas de brilho amarelado e o desgaste das paredes que um dia foram brancas. Eu já estava quase completamente limpo, exceto pelos rios de plasma impuro e vermelho que persistiam em escorrer pelo meu rosto inchado e abatido. Anderson Douglas já nos deixara, pois estava cansado e embriagado. As palavras sussurradas pelo casal no quarto ao lado pareciam-me quase gritadas, pois meus desregulados sentidos corporais aguçaram-se involuntariamente devido ao forte impacto emocional. A solidão daquele quarto de hóspedes aos poucos ia se intensificando junto ao frio. Jonatham e Caroline estavam tão insones quanto eu. Em consequência daqueles agitos noturnos, não cessaram a conversa antes que amanhecesse.
Continuaram a conversar, utilizando-se daqueles agonizantes sussurros forçados sobre pena, dor e sobre como eu estava gradativamente jogando no lixo o meu futuro, que certa vez se apresentara tão incomensurável e brilhante como o sol de veraneio. Caroline não deixava de relembrar o namorado de todo o risco do futuro dele e, consequentemente dela também, ser desperdiçado se ele continuasse sendo tão bonzinho comigo - um alcoólatra inconsequente que o acompanhara desde os tempos de imaculada inocência infantil. Saltavam, descontrolados na minha mente, intercalando-se, fragmentos de memórias dos vários anos pelos quais nossa amizade se estendera.
- Vamos deixá-lo ficar aqui conosco, por enquanto. Só por alguns dias, até que as coisas se estabilizem, pelo menos um pouco, na casa dele. Não podemos deixar o Bill desamparado. - gentilmente disse Jonatham.
- Mas e se ele não conseguir acertar as coisas por lá? E se for banido definitivamente da casa da mãe e não conseguir um outro lugar para morar, até que finalmente desista de procurar e fique aqui, enchendo a cara dia e noite, noite e dia, fingindo ser escritor, falando besteiras sem fim, comendo toda a nossa comigo, bebendo toda a nossa bebida, quebrando as coisas... você sabe que isso tem um grande possibilidade de acontecer. Além disso, o Bill precisa crescer, Jonatham. Ele não pode continuar nutrindo essa realidade de ter um mundinho particular. Vai acabar se frustrando tanto na vida, que jamais será possível se reerguer. - respondeu a moça, me causando confusão mental, pois eu não sabia se ela estava pensando com um involuntário egoísmo latente, ou se estava genuinamente preocupada com o destino tanto meu, como deles.
- Está bem, está bem. Mas tenta conversar com ele amanhã. - ela disse com um denso suspiro servindo como ponto final para a sentença.
- Hoje. - ele corrigiu, abobado.
O silêncio que seguiu-se, tão agonizante para mim quanto o latejar do inchaço do beiço ferido, só fora perturbado pelas vozes nos sonhos magníloquos do meu repentino adormecer. Sonhei com o que ocorreria após o meu indesejado despertar: a fictícia história de acidente que eu narraria para o meu carrancudo patrão, Marcus, pois seria bastante embaraçoso trabalhar com aquele horrendo aspecto. Pensei em dizer que sofrera, novamente, um acidente de motocicleta. A minha desconstruida figura inserida no sonho logo percebeu que aquela era uma história idiotamente inapropriada para se contar, pois seria uma grande besteira, já que eu pareceria mais inconsequente ainda, visto que os ferimentos do rosto denunciariam a falta de capacete. Decidi por dizer que me levantei no meio da madrugada, afim de ir ao banheiro, e, na densa escuridão noturna despenquei acidentalmente da escada, completando a quebra com uma batida com o rosto no último degrau.
Não foi um sono longo. Acordei já pensando em como transmitir aquela mensagem ao meu patrão. Certamente ele ficaria bravo, sem nenhuma compaixão, já que era uma sexta-feira, o dia mais movimentado na Redação. Ninguém assumia o meu lugar, na editoria de jornalismo cultural, durante o final de semana.
Jonatham e Caroline ainda dormiam pesadamente no quarto ao lado. Eram quase onze horas da manhã. Eu já deveria estar me encaminhando para o trabalho, visto que meu horário se estendia do meio-dia às oito da noite. Aquilo o enfureceria ainda mais.
Pensei em escrever, mas essa era a opção mais demorada, o que certamente pioria ainda mais toda a situação. Telefonei e contei a história da queda da escada. Depois da conversa de quase três minutos ao telefone, mais uma dor me incomodava: no ouvido esquerdo, por conta de ter ouvido uma enxurrada de palavras de Marcus, que finalmente cedera, me desejando despreocupadas melhoras. Ele confiava em mim, pois durante todo o período de até então um ano e dois meses em que eu trabalhava para o IDiário, mesmo com todas as diversas instabilidades amalucadas da rotina de etilista profissional, eu jamais o desapontara significativamente e exalava simpatia a cada sorriso que amigavelmente distribuía para ele e para os colegas - também pelo fato de eu ser apenas um garoto esforçado ali naquele ambiente jornalístico.
Feito o contato, eu não conseguia imaginar por onde começar a resolver os demais problemas. O que eu estava fazendo? O que eu poderia fazer? Tudo perdera o encanto e soava literatura trágica. Escrevi mentalmente, por instinto, o seguinte poema, por não saber mais exatamente o que fazer:
a única realidade
nos dias que se estendem
até a eternidade
é o vício.
vantagem, chantagem,
coragem para o autossacrifício...
[...] tristeza e felicidade.
tudo isso é vício.
até a liberdade
que é só uma utopia dos livros
- ciclo sem término.
também o negro e branco.
vício é ganância.
e tudo é tão confortável,
naturalmente tolerável,
que se torna essência.
Nenhuma poesia serviria como solução. Busquei nos meus pensamentos embaralhados alguma referência literária que pudesse me amparar naquele momento de crise pessoal. Nada. Entretanto, como dissera Caroline, eu gostava de fingir ser um escritor. Pensei carinhosamente no que já faziam mais de dois anos desde que eu abandonara quaisquer outra possibilidade de sustento que não fosse escrevendo. Literatura não resolveria os meus problemas, apesar de tudo.
Era hora de pensar a atitude mais razoável possível a se aderir. Tinha de deixar a inconsequência perder-se nas lembranças, mesmo que por um tempo. Primeiro, no entanto, tentei buscar nos confins da minha mente o que me fizera adentrar por caminhos vitais tão estreitamente claustrofóbicos. Pensei no meu passado, no meu presente e na enevoada nuvem que se exibia na janela, encobrindo o brilho solar. O calor enfim chegara. Pássaros assobiavam instintivas canções de amor e ódio. As buzinas soavam como um coro, lá embaixo. Treze andares me afastavam do solo. Me levantei e olhei pela janela. Imaginei-me despencando do parapeito, voando brevemente no ar da manhã até aterrissar no calor da morte que queimava o asfalto negro. Mas não havia muita vida para tirar do meu âmago. A indecisão parecia mais densa do que uma tempestade de verão.