Controle e moderação (conto)


            Aqueles caras que nunca souberam segurar a onda, são os que causam, e sempre vão causar problemas. Já morri várias vezes nessa vida... Mas segurei a onda, e por isso estou aqui para comentar tais estranhezas. Quando eu transcendia o meu próprio corpo, descia novamente, com a paz dos batimentos dessincronizados do meu coração dormente. E então, me recuperava - me recupero -, deixando os meus pensamentos me torturarem por quererem mais quentura, por uma expansão incalculável da vista e da audição: uma mistura da inspiração e do estado vegetativo... Esperava tudo parar de tremer, e o corpo, e o sangue, esfriarem, assim como aquela vontade de abandonar tudo por um refúgio de paz.

               Sempre soube administrar, controlar, mesmo com as dificuldades recorrentes, as situações onde o meu corpo clamava por suas necessidades básicas - a fome, principalmente. Dias bebendo; tendo as boas e milenares ervas como companheiras; adicionando doces e balas de vários tipos nas minhas dietas cotidianas; passando perfume na camisa; tomando Coca-Cola... Tudo isso, por eu querer algo além de água barrosa, cigarros baratos, café preto - frio e amargo - e pão dormido com manteiga líquida durante as minhas desconcertantes viagens pelo mundo.

                 Por muitas dessas viagens, eu vi alguns desses caras que não souberam segurar a onda. Uma vez, por exemplo, eu me deparei com uma mulher gritando desesperadamente e toda ensanguentada, com seus ossos querendo ficar à mostra, quase perfurando sua fina camada de pele pálida e arroxeada... Por querer algum trocado ou outro, ela estava quase avançando para cima de mim, como uma víbora ameaçada.

                Mais nitidamente chega em minha memória quando penso em perder o controle do que estou fazendo da minha vida,  a lembrança da noite em que vi um cara descontrolar-se violentamente depois de ter sentido o efeito da devastadora e inquebrável pedra ter passado... Pela primeira vez. O terror nos seus olhos transformou a minha serenidade em uma angustiante pena que não levaria à lugar nenhum. Soltou-se demais por conta própria, e acabou descendo demais, sem escada nenhuma para voltar à superfície.

                  Eu conheci um cara uma vez, que estava passando por uma fase paranoica, que eu tentei, desde a ocasião em questão, livrá-lo. A sua paranoia era em conhecer aquela sensação de queda livre que descrevi acima. A Coca-Cola já não era mais suficiente. Ele queria beber de outra fonte. Coca em outra forma. Seu nome era Andy. Nome engraçado. Em decorrência da sua dieta ele era alto, e magro. Muito magro. Muito magro. Seu rosto era desniveladamente esquelético. Os seus cabelos vermelhos contrastavam com seus olhos negros e pele pálida. Parecia com um cara chamado Ziggy, que eu conhecera certa vez. Além disso, ele me lembrava um outro Andy, por causa do seu carinho e apreço pelos tristonhos escondidos nos escuros cantos da cidade, assim como o artista que tinha o mesmo nome que o meu tal colega.

                 Eu o conheci através de um grupo de amigos em comum. Fomos numa festança. Na fim da festa, quebramos umas garrafas pela rua, com um dos caras quase despido, gritando e saltando como um animal encarando sua presa, eufórico por sangue e comida. Sangue quente, comida fria. Fomos justamente curtir a posterioridade da festa, fazendo outra festa, na casa do nosso amigo animalesco - eu realmente respeitava aquele cara, já que o conhecia há anos, e sua casa estava sempre aberta à todos que queriam aquecer-se, e fugir do resto do mundo careta e frio.

                Lá, tivemos uma festa melhor que a primeira... Mas sem muita música. Alguns que sabiam tocar violão o fizeram. Eu me sentei ao lado de Andy, e fiquei conversando por horas sobre qual seria a sensação de afundar-se tranquilamente num oceano abismal. Ele, então, começou a tagarelar sobre Coca-Cola, depois sobre tipos de rochas, depois sobre seus desejos mais angustiantes. Aquele cara estava quase deixando-se desprender, para então virar alguém daquele tipo que sempre causa problemas.

                 Andy era um rapaz... Jovem e rico. Tinha largado os estudos duas vezes, e, naquela época, tinha acabado, finalmente, de concluir. Apesar dos problemas, aquele cara era um gênio - falava sobre assuntos dos quais eu não fazia a menor ideia de como rebater, então, eu apenas ouvia e admirava calmamente  -  ... Mas ele quase não sabia segurar a onda. Além disso, me preocupava o fato dele poder consumir o que queria, na hora em que queria.

               Nos encontramos algumas vezes mais. Andy me mostrara que sabia cantar muito bem. Me impressionei pela naturalidade e pela humildade em sua voz e olhar. Naquela mesma noite, saímos para faturar umas garotas. Fomos à uma boate. Depois daquela boate, levamos cada com a sua garota para a casa dele: eu, uma morena meio gordinha, que parecia meio atordoada; Andy, uma loira bronzeada de dentes tortos e olhos castanhos. Finalizamos a festa particular, com um serviço nojento, e as vimos ir embora, sozinhas em uma escuridão azulada e silenciosa: não conseguíamos encontrar o sono. A única coisa que quebrara aquele silêncio fora o início da conversa séria do magricelo, me enchendo de assuntos preocupantes. A fumaça me calava. Só ouvia e apreciava aquela lamentação gratuita... Aquela locomotiva  autodestrutiva e fora de controle.

               Me contara que uma vez por mês, ele pegava a sua moto, e viajava algumas dezenas de quilômetros, para comprar mercadorias ilegais com caminhoneiros que vinham da Colômbia. Então, passava dias, quase semanas, sem dormir... Olhando todos indo embora, com seus olhos esbugalhados. A arrogância, entretanto, ainda não havia lhe sido apresentada. Tudo que eu lhe disse, era que ele deveria segurar a onda. Ele deveria segurar a onda, e não apenas deixá-la o levar, num fluxo interminável e fora de seu controle. Eu estava, com dificuldades, segurando a onda. Todos devem segurar a onda na mutação constante do mundo e de nós mesmos.

Postagens mais visitadas