Chuva quente e esfumaçada... Divino. (conto)




            Era dia de verão, mas o céu estava negro. Passava do meio-dia, e o calor estava impregnado no ar quente do mormaço. Eu tinha acabado de ter a minha primeira refeição em dois dias. Meus braços estavam aos poucos parando de tremer em decorrência da instabilidade do meu corpo. Eu tinha, afinal, passado dois dias com apenas o álcool de duas cervejas e o cloro imundo e quase tóxico de água da torneira pesando em meu estômago. A inspiração, agora, poderia aparecer, visto que o foco na sobrevivência já não se sobressaia.

            Começou a chover. Eu não tinha guarda-chuva. Pensei em aliviar o calor, já que a minha única opção era pegar chuva. De novo. A chuva, entretanto, caía quente. Minha pele quase se queimou nos primeiros minutos. QUANDO ENFIM ME ADAPTEI, A DOR TRANSFORMOU-SE EM UMA ESPÉCIE DE alívio. O frescor, porém, não veio ao meu encontro.

            Abri os braços e olhei para o céu tristonho daquela tarde de verão um tanto incomum. Meus olhos encheram-se de chuva morna. As gotas caíam cada vez mais velozes, vorazes. MESMO ASSIM ERA TUDO MUITO BONITO; PARECIA UM QUADRO; ÓLEO SOBRE TELA; UMA FUGA DA REALIDADE; UM CONTEXTO LITERÁRIO; um sonho.

            ...

            Depois de algum tempo caminhando, quando estava quase chegando em meu condomínio - eu morava num apartamentinho de apenas um quarto -, senti um cheiro que já fizera parte do meu cotidiano há não muito tempo antes do ocorrido: A ERVA. A erva queimada. Maconha sendo fumada.

            Aquilo tudo era estranho naquela parte da cidade, naquele horário. O cheiro vinha de um carro preto, estacionado na frente de um enorme e velho galpão. A janela do carro estava descaradamente aberta. Tentei ignorar. Quando tentamos ignorar algo, estamos, automaticamente falhando em ignorar aquilo - queremos cada vez mais, miseravelmente, quebrar as nossas próprias promessas.

            Mesmo que eu não desse a menor atenção, aquilo estava quase que armado para mim. Uma emboscada. Pegadinha dos céus. A chuva me sacaneara novamente.

            Dentro do carro preto, havia apenas um cara e seu baseado. Eles me viram de braços abertos para a chuva. Sentiram a minha falta de egocentrismo - somente humildes percebem e entendem a humildade que é transparecida pelo olhar. O cara me chamou. Fez um sinal com a sua mão livre.

            - Que chuva boa, hein, amigo? Lava tudo, refresca a o solo e a mente dos que se banham nela. Disse-me aquele homem. Não era muito mais velho do que eu era na época: aparentava ter mais ou menos uns trinta e poucos anos - porém, poucos dentes lhe restavam na boca.

            - Pois é. Abro os braços para a chuva quente. Pelo menos a gente ainda a têm. - respondi-lhe, me aproximando da janela. - Chuva que Deus nos manda, meu bom.

            - Verdade. Estás morando aonde, agora? Pergunta-me, PARECENDO JÁ ME CONHECER HÁ TEMPOS... E, antes que eu pudesse lhe responder, ele colocou a seguinte sentença no ar esfumaçado, jogando-a, como se fosse um ponto final à frase: Quer fumar um pouco? Só um trago... - e mostrou-me um baseado grande, e torto, de ponta flamejante.

            - Não, obrigado, amigo. Eu estou morando mais à frente, agora. - Respondi-lhe calmamente, confiando naquele cara, sem motivo algum, já que não me lembrava da onde o conhecia, apesar de que parecia que já o conhecia mesmo.

            - Ali na frente? Tá bom?  - sorriu-me.

            - Claro, muito bom. Eu até que me viro bem.

            - Não podia ser diferente, eu acho... Só de já morar em algum lugar, já está bom... Não é? - surpreendeu-me.

            - Uhum. - Não sou de justificar minhas concordâncias.

            ...
            ...

            - Jesus te ama. - disse-me o maconheiro, repentinamente.
         
            - Jesus... O Grande. O tipo de cara que gosta de todo mundo. Um grande homem, mesmo, ele foi. O maior camarada de todos, como dizem. - eu disse-lhe em resposta.
         
             Ele me mostrou uma tatuagem em seu ombro direito, ao mesmo tempo em que me ofereceu um outro trago. Neguei o trago, e vi o rosto de CRISTO em seu ombro. Então ele concluiu:

           - Fiz essa tatuagem no aniversário dele, no ano passado.

            Surpreso pela alegria e humildade do Maconheiro Quase Sem-Dentes, agradeci-lhe e elogiei a sua tatuagem. Me despedi, e recebi um aceno em troca. O cheiro de maconha misturava-se ao de terra molhada. A chuva esfriara.


           Ao andar alguns passos, escutei a voz daquele homem me chamando -"Heyyy!!" -, para corrigir um pequeno erro que eu cometera em nossa conversa:

          - Não foi o maior homem, o Cristo... Foi o nosso novo Deus... - acenou-me largamente.

         Concordei com a cabeça, e voltei a caminhar. Alguns segundos depois, a chuva parrou de cair, e o calor prosseguiu castigando.

          ...
          ...

          Aquilo só podia SIGNIFICAR alguma coisa... Eu, porém, não sabia, e ainda não sei tal significado.      

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