Casa verde (conto)
Onze dias trancados. Trancados por uma ânsia pela liberdade. Mas a liberdade, segundo o que tínhamos aprendido
Esses onze dias trancafiados foram cuidadosamente tramados durante dois meses. Estávamos lá naquela casa de campo pequena, por nossas próprias contas. Apesar de cada um de nós ter razões diferentes para fazer aquilo, haviam certas conexões em comum conosco. E todos sabíamos que não éramos exatamente criminosos... Mas a cadeia poderia vir a ser o nosso destino, conforme a nossa vida um tanto quanto promíscua, porém orgulhosa. Ali, parecia um pouco melhor do que a prisão. E nós continuávamos cavando sem querer parar, buscando incansavelmente uma profundidade que seria o limite - sem poder descer ainda mais, e sem ser impossível retornar à superfície refrescante.
Eu (André), estava molhado, e manchado de um marrom amadeirado com odor alcoólico. Aquilo parecia fazer bem às minhas narinas treinadas. Whiskey... A chave! Este meu cheiro combinava-se ao de todo o resto: campo molhado, suor, fumaça e imprestabilidade. As minhas calças pingavam gotas grosseiras e sujas de uma mistura de líquidos dos mais variados tipos. Tive de tirá-las e ficar de cuecas. Ninguém importou-se, apesar da falta de intimidade. Há doze ou treze, - ou talvez quinze horas - antes daquele ponto, eu havia iniciado aquele retiro de um jeito brilhantemente burro e desleixado: bebendo, junto com o meu melhor amigo, uma garrafa e pouco mais de meia do conhaque mais barato que se possa imaginar. O que aconteceu depois, é só um mero detalhe - só salvo pelo fato de eu ter lavado aquelas minhas calças, de um jeito porco - no chuveiro, com shampoo e sabonete -, antes de finalmente resolver ir para cama. Minhas velhas e pobres calças manchadas ficaram ali, pelo chão decorado com gotas de mijo escuro, esperando os outros rapazes chegarem - e é aí que se deu o episódio da cueca. Eu recebi os quatro amigos (e a namorada de um deles) do meu melhor amigo com acenos quase baixos, e um sorriso com curvatura sinuosa e pessimamente construída.
Os outros rapazes me olhavam com um olhar que, através da minha provocativa inquietude, parecia transmitir uma certa sensação de desconforto. Era recíproco. Seus olhares também me passavam - em variáveis níveis oscilantes - alguma espécie de preconceito, que aos poucos era drenado por uma quase inexplicável pena, até, enfim, transformar-se no final do ciclo, em uma categoria própria e indefinível de um respeito que só poderia ser compreendido se sentido.
Os sons misturavam-se, e eram confusos. Lá fora, o barulho do vento e das árvores fazendo amor, era mais alto do que nossas imaginações voadoras... Cada um estava aprisionado em sua própria consciência.
Aquele frenesi mental iniciou-se com um acúmulo solidário que fizemos para conseguir o maior monte canábico possível. Uma montanha verde que nos unira para abrir ainda mais nossas mentes, porém nos fechar ao resto do mundo. Organizamos tudo. O monte verde fora guardado em uma cambuca grande, e escondido no armário da cozinha - afinal, era aquilo que nos alimentaria espiritualmente. Fazia um pouco de frio, do lado de fora, naqueles dias. Sabíamos que a coisa que nos esquentaria realmente, era aquele nosso estoque. Visitávamo-nos ele entre quinze ou vinte vezes aos dias. Guardávamos baganas em uma lata de achocolatado vazia. Nosso plano, era no final do retiro, enrolar todas essas baganas em um grande e anestesiante monte de seda. Sabíamos algo sobre sustentabilidade, sobre reaproveitamento.
Um dia depois daquele pessoal todo ter finalmente chegado, aconteceu uma situação bastante absurda, porém engraçada ao limite: Marlon, um rapaz feio - era um magricela que tinha descomunais espinhas sobre o rosto, nariz inchado (mesmo não sendo bom bebedor), olhos caídos, e um cabelo castanho que parecia ter sido desbotado até quase perder a cor e a vitalidade - sentiu uma incontrolável vontade de ir ao banheiro, para descarregar uma grande e marrom bomba de fezes. Então, em sua mente achatada; chapada; alta, veio a ideia prensada de pregar uma peça em Samuel, o meu melhor amigo, que era o único de nós imerso em um sono quase inabalável - ele dormia tranquilamente, com as mãos entrecruzadas, como em uma oração ao seu demônio interno já tranquilizado, todo encolhido na cama de solteiro que ficava no melhor quarto da casa. Marlon gritou do banheiro, mas seu grito não ecoava tão forte pelos cômodos:
- Alguém me trás alguma sacola de plástico! Rápido!
Quase de imediato, e com risos frouxos estampando o meu rosto pálido, dei-lhe em mãos a tal sacola plástica, sem nem ao menos ter noção do motivo. A mão nua daquele rapaz nú surgiu na fresta aberta da porta do banheiro. Pegou a saco. Gritou novamente, então:
- Eu vou cagar nessa sacola!! - exclamou com uma vontade ardente.
Todos ríamos até o diafragma doer - eu achei que iria morrer do coração, pois aquela dor subiu sem parar. Eu não me importava. Marlon saiu em passos largos do banheiro e um rastro de fedor podre atrás dele, refletido pela luz amarela da lâmpada daquele cômodo, em uma nuvem gasosa. Marlon corria em círculos, com a sacola quente e cheia de massa marron, erguida com força por suas mãos.
O melhor amigo do cagão, Ivan - um rapaz alto e que parecia um ator de cinema desconhecido e vesgo -, lembrou-lhe de encostar a sacola de merda no rosto de Samuel. Todos nos aproximamos com largos sorrisos e risos baixinhos, e encostamos a sacola quente, cheia de cocô fresco, que parecia pronta para vazar ou explodir, no rosto do nosso amigo, que dormia um sono pesado. De repente, este acorda, e fica totalmente confuso, enquanto escondemos a nossa arma secreta de sua vista. Ivan gritou algo muito estranho, como:
- Vamos comer o rabo dele!! Vamos destruir esse buraco que o faz sentar! - tinha um gargalhar estridentemente alto, com sua boca aberta até o ponto máximo, com todos os seus dentes sendo exibidos, assim como o túnel negro de sua garganta.
Nos negamos; acertamos alguns socos brincalhões em nosso camarada ali deitado, e nos dispersamos. Abri uma nova garrafa e preparei um drink amargo. Todas as noites terminavam quase da mesma maneira.
Quem melhor me acompanhava nos drinks era Rico: um colega que eu já havia conhecido antes daquele refúgio ser realizado, em uma noite de bebedeira na minha cidade natal - naquela ocasião, ele havia realmente passado mal. Rico era um rapaz com a aparência grosseira: tinha grandes sobrancelhas curvadas ao meio, um nariz fino e comprido, cabelos escuros e cacheados - um ou dois cachos sempre pendiam à frente de sua longa testa -, peito e barriga peludos, e mais músculos do que qualquer outro de nós. Cagava quase que de hora em hora. Eu, e um dos meus melhores amigos, Big Jack, assim como muitos outros caras por espalhados pelo país, já havíamos traçado a sua namorada: uma garota loira, com um rosto um pouco esquisito, e grandes peitos com os bicos rosados e vesgos, que faziam um ângulo completamente anormal - um apontava para a esquerda e outro, para a direita. Ríamos sobre isso. O fato era que o pobre Rico era um bom homem. Ele era, porém, o mais sério de nós, e tentava nortear as situações, observando-as atentamente, com uma grande ruga no meio da testa, entre as suas sobrancelhas - o que fazia elas parecerem ainda mais curvadas -, e com seus braços cruzados. Enquanto os outros riam e enrolavam suas línguas e se seus charros, antes de o sono chegar, Rico e eu éramos os últimos com os corpos erguidos em sinal de respeito para com algum Deus de alguma cultura longínqua que talvez existisse - gostávamos da ideia de que tudo deveria ter um motivo que não fazia sentido. Samuel, Big Jack e Alberto também bebiam, até um ponto - depois, eles tentavam me controlar, mas sabiam que, desde que eu tivesse algo para beber, e um lugar para me sentar (e um banheiro desocupado por perto) eu não era preocupante, na maior parte do tempo.
No dia seguinte eu acordei antes de todos os outros - o que sempre acontecia. Lembrei-me que quando a noite estava quase apagando-se totalmente com o fechar dos olhos de todos, Marlon saiu correndo junto de Ivan, e os dois, estéricos, jogaram aquela sacola cheia de bosta mole no quintal do vizinho (que passava a maior parte do tempo fora de casa). Fiquei imaginando o que o cara da casa ao lado pensaria quando visse um pequeno e intimidador monte de excremento humano enrolado em plástico, bem no meio de seu gramado. Fiz café. Bebi café. Preparei um copo de whiskey com refrigerante de cola (da marca genérica), e degustei aquele café da manhã dos campeões aposentados - apesar de eu estar longe de me aposentar, até pelo fato de meu trabalho ser apenas retratar imagens distorcidas através de uma lente: masturbação à visão alheia. A garrafa estava seca. Coloquei-a na pilha: era apenas a quarta que eu consumira naquela maratona fugitiva. Saí para comprar mais, caminhando em um mormaço que destoava totalmente do clima dos dias anteriores - os deuses para os quais eu e Rico brindamos incansavelmente na noite anterior pareciam revoltados comigo. Um quilômetro e meio, mais ou menos, foi o que caminhei até encontrar o mercado mais próximo. Comprei uma garrafa de whiskey com 38% de teor alcoólico (eu tinha acabado de descobrir que todo o whiskey de 38% de teor alcoólico é uma grande bosta destilada e engarrafada, mas era o que dava para comprar), e que vinha com um bonito copo de plástico quadrado e com o logotipo da marca estampado - o chamei de "Copo do Mestre". Voltei bebendo goles e mais goles da garrafa. Quando cheguei, me deparei com Rico fazendo mais café, enquanto os outros ainda roncavam uma sinfonia bizarra. Eu sabia que o resto do dia seria dedicado à acabar com os três quartos que restavam na garrafa - meu caro colega de sobrancelhas curvas e volumosas, também. O fizemos, jogando um pouco de pôquer.
Os dias passavam, e a fumaça não parava de dançar de um lado para o outro dentro daquela pequena casa. Todos dormiam, mas ela continuava lá, esperando que eu abrisse meus olhos vermelhos antes de todos os outros, e mandasse mais fumaça para que o espetáculo continuasse tão maravilhosamente dançante - mesmo com todos nós parados, com o queixo caído, que só levantava quando a saliva escorria boca à baixo, olhando para os movimentos claros e leves daquela fumaça.
Era eu quem cozinhava, na maioria das vezes. E nem sabia direito o que estava fazendo... mas sempre parecia bom. Pizza sabor tomate; pizza sabor cebolas; ovos fritos com gemas molengas; arroz com qualquer acompanhamento que estivesse por perto; hambúrguer; até batatas fritas francesas empapadas de óleo que secava só quando batia nos fundos dos nossos estômagos; ou qualquer coisas que desse para fritar. Comida não faltava. Café, menos ainda. Erva dormideira, menos ainda. O whiskey acabou faltando à mim, quando meu dinheiro acabou. Sempre que eu tenho alguma fase com muita abundância, logo depois, eu costumo passar por uma escassez inquietante - só que aquela, não fora tão inconveniente, pois se dera em um período muito breve, e onde eu podia descarregar em outra coisa, como por exemplo, andar em círculos, montado em uma bicicleta infantil por todo aquele imenso quintal verdejante. Então, depois das refeições, e sem ter de lavar a louça, eu me deitava e acariciava minha pança fermentada, e enroscava os pelos da barriga e do peito, passando-os carinhosamente por entre os vãos dos meus dedos quase juntos. Minha mão estava mais amarela do que nunca, mesmo sem eu estar peidando em sima dela, ou preparando algo com açafrão.
Acho que foi no quinto - talvez tenha sido no sexto - dia, que fizemos uma farra do tipo que faz parecer que os limites de diversão, assim como zoeira e furdunço, quase que astronômicos, mas por pouco não os extrapolando. Não como um trem desgovernado, quase saindo dos trilhos, mas como um foguete voando em zigue-zague, lançando jatos de fumaça no espaço por onde passa, em velocidade máxima, explodindo em um impulso de liberdade ilimitada. O que marcou a noite foram as inconstâncias dadas em camadas densas e extremamente díspares de emoção. Em certos momentos, os sorrisos estampavam todos os rostos; e todos os olhos e todas as bocas se curvavam para os mesmos lados. Em seguida, como uma maré de mal-cheiro, chegavam as tristezas que estavam escondidas dentro de cada um lá presente. Nas ondas melancólicas, alguns lamentavam-se por mulheres; outros lamentavam-se por conta da morte de alguém que nem conheceram e que morrera há mais de vinte anos antes do ocorrido; outros apenas lamentavam-se por serem humanos. Eu nem conseguia imaginar, nem cogitava fazer qualquer esforço para avaliar o quão alto e marginal aquele acúmulo de barulho bagunçado que nós produzíamos estava parecendo para os vizinhos.
Em um dos picos de alegria daquela noite estérica, todos gargalhavam com olhos lacrimejando de tão esbugalhados, dentes à mostra, e emitindo sons ao ritmo do balançar de seus diafragmas. Exausto, Samuel deitou-se no chão, no meio da cozinha, sem condições de considerar que haviam locais muito mais adequados para descansar o corpo. Todos assistiam ao seu pequeno espetáculo, ao seu redor, ajeitados em um círculo disforme. Com sede, ele pediu leite. Foi quando, aos risos, Alberto abriu a geladeira, e sacou uma caixa de molho de tomates, que se parecia, no quesito de formato e tamanho, com uma caixa de leite. Maldoso, com um nível de consciência que lhe permitia diferenciar certo do errado, ele jogou aos montes, o vermelho e espeço molho de tomate, na boca de Samuel, que bebeu longos e mais longos e mais longos e mais longos goles ardentes e massudos antes de perceber que o líquido não era leite. Samuel virou a cabeça, e mais um pouco do molho de tomates sujou a lateral do seu rosto. Aquilo foi simplesmente hilário. O cansaço do nosso amigo sujo de vermelho e com estômago embrulhado, espalhou-se rapidamente depois daquilo, como um vírus transmitido pelo ar esfumaçado da noite - e, aquele seu embrulho no estômago fora transmitido para mim, só que através de álcool. Dormi no chão nu do corredor.
É engraçado imaginar que havia uma pessoa ali que servia, durante as nossas viagens mentais, quase como uma espectadora, mas que na verdade, segundo o que depois entramos em acordo, tinha importância muito grande, pois esta acabava por impedir, de forma discreta, que algumas situações tomassem um rumo ainda mais preocupante: Era a namorada de Ivan, que estava conosco, um tanto quanto firme, assistindo todos aqueles pequenos e particulares espetáculos de loucura que se alternavam imparáveis todos os dias em que estávamos lá - eles só paravam quando a noite estava mudando a cor de seu semblante de um negro denso e aparentemente impenetrável, para um alaranjado que anunciava o fim das energias, e que o Sol iria recarregá-las enquanto desfrutávamos de um sono laranjado . O sol parecia amanhecer totalmente laranja - os gases não pareciam serem gases, mas uma imensa esfera de lava, que iria explodir quando menos esperássemos. A energia que o Sol Laranja transparecia durante o amanhecer era nossa fonte de sanidade quando tudo parecia estar se esgotando. Era difícil imaginar como a pequena Marion, aquela moça de finos cabelos negros, e olhos, e braços, e pernas, e lábios... pequenos, lidava com tudo aquilo quando não estava alta, assim como nós - não tanto quanto, mas também ficava alta de vez em quando, pois pedia para seu namorado quase retardado fazer a fumaça verde e doce ser transferida, como a drenagem de uma alma fraca sendo passada da sua boca para as vias aéreas de Marion, dançando com uma louca delicadeza entorpecente. O jeito, provavelmente, era esperar que a noite começasse a terminar, sabendo que nos abateríamos, que morreríamos por conta própria por algumas horas. Mas o que deixava a presença dela agradável, era que ela não falava quando não precisava falar - quando o fazia, era providencial, e, inclusive, impediu, em um já mencionado episódio desfocado e esquisito, que um dos nossos amigos tivesse adicionada outra função ao ânus além de expelir bosta. Marion também não se importava com nosso cheiro, e nem com nossas roupas - Marlon usava um roupão aveludado e azul; eu usava calças com cheiro de shampoo, Rico usava uma camisa imaginária que tinha a estampa dos pelos de seu peito; Alberto usava um calção de um time de futebol estrangeiro... e não mudamos de roupas até o fim da estadia.
No ápice de um descontrole lento, porém efetivo; anestesiado, porém agonizante; desfocado, porém perceptível... Alberto chegou em meu ouvido esquerdo - que era o mais entupido de cera -, e disse-me que precisava deitar-se, pois estava com a sensação de que ia morrer. Ele queria deitar, pois se morresse, não cairia... apenas continuaria em seu sono relaxado. O curioso, é que ele disse isso tão calmo, e colocando no fim de sua declaração, quase como um ponto final:
- Eu não consigo me mexer. Eu mal consigo mexer o meu diafragma para respirar. Eu vou morrer. - ele disse isso, com uma serena expressão, e foi para o quarto andando,
Enquanto isso, Big Jack varria a varanda com um sorriso paralisado e olhar vago.
Em uma das últimas noites, o clima piscava, apesar de não existirem tempestades nos céus - o sol fazia o seu papel - : Ivan não sabia a diferença entre riso e choro, foco e distração - e enrolava charros e mais charros e mais charros e mais charros grossos e perfeitamente pilados -; Samuel acreditava ser invisível, quando os outros estavam concentrados em seu show: uma alternância de vozes, dizendo repetidamente que a detinha a pura invisibilidade, enquanto se retorcia no colchão em que estava deitado; eu estava andando em círculos, ouvindo uma música que só tocava dentro dos meus miolos, comendo sanduíches de maionese e presunto... até que parei na frente de um armário escuro, e comecei a sentir a sensação de que ele estava me sugando, com força máxima para seu interior escuro e desconhecido - um mundo alternativo... E isso me fez focar e desfocar dos outros caras, enquanto estava sendo sugado com tanta força que parecia que meus órgãos internos estavam pressionando-se uns contra os outros, enquanto eu ia cada vez mais fundo, e tudo ficava cada vez mais escuro. Meus olhos lacrimejavam de agonia, e o meu sorriso estava crescendo desproporcionalmente, parecendo que ia rasgar meu rosto ao meio. Aquelas situações foram registradas em um filme caseiro que Rico estava fazendo naquele dia. Visto em outra ocasião, aquele misto de situações filmadas pareceu uma feia caricatura do que é a espécie humana: um conjunto de dualidades que coabitam o mesmo mundo, mas que o enxergam com enfoques e desfoques alternados, e muitas vezes incontroláveis... e tudo isso é, e sempre foi, movido por uma inevitável ganância pela vida. Era tão engraçado. Uma vez, eu escrevi um poema horrível sobre tudo isso, e quando uma mulher que estava saindo comigo leu, levantou seus cabelos de uma cor indefinivelmente linda, e olhou-me com aquela sua expressão magricela e de uma beleza inexplicavelmente única, e disse que era "tudo muito mórbido". Eu lhe disse que era uma comédia. Ela continuou achando mórbido.
O grande problema do ser humano é não conseguir aturar seus semelhantes (muito menos discrepantes) por muito tempo. Quando se está confinado durante 24 horas por dia com alguém, a loucura de um começa a afetar o outro - e nós definitivamente éramos loucos. Foi o que aconteceu - mas, infelizmente não lembro-me quais foram as maiores intrigas. Só lembro que era bizarro o modo como Rico olhava fixamente do início ao fim os borrados amassos intensos protagonizados pelo casal que lá estava, sem nem ao menos disfarçar - até pelo fato dele posicionar-se em uma distância quase mínima, com os olhos quase perfurando-os bem no meio da junção que faziam com suas línguas. Também lembro-me de como reagi quando Ivan me chamou de louco, já que acabei esmurrando a parede dos fundos, em quatro golpes que fizeram as minhas mãos sangrarem nas juntas das 'churréias' - eu sabia que eu era louco, e sabia que Ivan também era... mas eu só admitia ser chamado disso por mim mesmo - até pelo fato de eu ter tomado alguns tragos. Os olhares de todos estavam repletos de desconfiança uns dos outros. Ninguém confiava nem sequer em si mesmo. Era uma esquizofrenia voluntária e passageira que fazia tudo ficar ainda mais tenso.
Lembro que a última coisa que fez escala em meu copo on the rock's foi uma dose dupla de whiskey com meia de água, e a maior pílula de aspirina efervescente que consegui encontrar naquela casa - aliás, a pílula estava vencida, e tinha um sabor desgastado de limão velho - antes de pousar em meu estômago repleto de merda mole. Eram onze da manhã, e o Sol estava tão claro e tão brilhante que parecia branco - como eu já tinha me cegado o suficiente naqueles onze dias que haviam acabado de ser passar, decidi não olhar muito para a estrela flamejante. Aquilo era um mau sinal. Não era nem amarelo, nem vermelho... Era o sinal para a minha retirada. Apertei as mãos de todos os dois que ali estavam acordados, e pude ver o olhar triste de despedida que estampava o rosto do meu melhor amigo - e até então, um ótimo anfitrião -, que estendera sua mão, e depois seu braço, e me entrelaçou dizendo que eu era como um irmão de sangue mais fino e mais claro. Samuel fungou seu nariz italiano, como se sua pequena gripe fosse um choro interno, e me viu entrar no ônibus. Nos vimos novamente na semana seguinte. Todos - exceto o meu melhor amigo, e Rico, que havia feito café, e dado algumas rizadas comigo, por eu estar bêbado de aspirina vencida - estavam dormindo, sonhando com viagens que nunca fariam, tentando criar rostos que jamais conseguiriam ver enquanto acordados... E eu só veria aqueles caras depois de muito tempo. Além disso, o meu querido "Copo do Mestre" tinha ficado ali, na bancada, como um figurante esquecido entre os pães e as migalhas, e as baganas, e as garrafas vazias. Dali em diante, a auto-destruição alternaria drasticamente seu andamento para cada um de nós, acelerando, e desacelerando o compasso, como um jazz desenfreado com músicos plugados em