Refúgio dos sonhos (conto)



          Eu chegara ali novamente, do mesmo jeito de sempre, como se fosse uma porra de um flashback, um deja vu, ou coisa do tipo, e, olhei para as mesmas - com exceções - pessoas que eu vira das outras vezes por ali... Parecia que aquelas pessoas, aquele tipo de pessoas, pertenciam àquele apartamentinho de dois cômodos imundo e decadente. O mesmo lugar, as mesmas pessoas, os mesmos olhares vagos e viajantes, o mesmo modo de chegada, e a mesma expectativa dos sonhos anteriores.

          O cheiro continuava uma mistura de fumaça e imundice acumulada, junto de ondas aromáticas alcoolizadas disparadas por quase todos, quase todas as vezes. O ar já não era mais pesado ali. OS SONHOS SOAVAM MELHORES. Minha vontade de criar aumentava cada a vez em que eu adentrava por aquela porta - a convidativa passagem que nunca estava trancada, fazendo os conhecedores do local sentirem-se sempre como convidados especiais.

          Já no lado de fora sempre se estava à espera de sinais sonoros de vida e dor... Sonoros o suficiente para motivar mais uma vez a viajem às loucuras de sua própria mente - e das dos seus companheiros sonhadores também.

          Todas as paredes eram brancas. As janelas sempre estavam fechadas. A liberdade, entretanto? Permanecia tão forte quanto em inimagináveis e intermináveis campos verdes - como o exterior do prédio - à serem explorados. A simplicidade era mágica e libertadora.

          Talvez fosse a liberdade o motivo da minha volta para ali, daquela, e em outras oportunidades (?) .

          - E aí, irmão, tudo certo? - dizia sempre, com um tom anestesiado transmissor de simpatia, Jackson, o "dono" do apartamento.

          Jackson SEMPRE fora assim, simpático. Ah, velho amigo de infância... Por onde andaria agora...? Com quem estaria desferindo aquele linguajar envolventemente característico...?

          - Como sempre? Tudo de boa... Tudo dentro do programado... Ainda não morri de fome, e nem me afoguei com o próprio ego... Quero dizer, ainda não me afoguei com o próprio vômito. - respondi-lhe, daquela vez em questão. Uma das minhas respostas indicadoras de sobriedade. MALDITAS.

          Então todos os moribundos amigos ali presentes retribuíram o cumprimento. Nos preparávamos para mais uma noite interminável, do tipo em que parecem haver várias noites dentro de uma única. Nos preparávamos para mais uma jornada regada de bizarras - pelo menos ao que agora soam - conversas e risadas duvidosas. Aquilo soava como uma noite em família para mim... Mesmo que não conhecesse um dos caras lá presentes: Paul.

          Paulo (Paul), era uma daquelas pessoas que sempre transbordavam cultura em suas falas polidas, e em seus devaneios filosóficos. Ele era amigo de um amigo que estava sempre por lá, chamado Higor, que era um cara que não fedia e nem cheirava... Da espécie de sujeito que aproveita o feeling alheio e lança divertidos e esporádicos comentários quando acha necessário.

          É... O álcool nos fazia rir por fora e chorar por dentro. Até que Jackson bolou o clássico fininho. Enrolado. Nos desprendemos um pouco da prisão que a realidade costuma ser. ALI era o "secreto" ponto de refúgio que tínhamos na época. Quando nós finalmente quebrávamos as carapaças que nos envolviam, a noite realmente começava a parecer fazer algum sentido.

          As paredes brancas nos encaravam, e me faziam pensar que eram telas prontas para serem pintadas, exploradas, desgastadas, maltratadas e exibidas à todo o mundo alternativo ao nosso alcance. Eu as encarava, deitado no chão, tendo uma linda perspectiva. Sabia que não poderia fazer o que havia em minha mente... Mas parecia-me lindo.

          David - um camarada que sempre estava por ali, também, e era um daqueles tipos que ficam assustadoramente sérios quando se entorpecem, mas que cotidianamente são caras até que divertidos de ter-se por perto (e, de fato, assim ele era ) -, lançou ao ar daquele quartinho fedorento, porém aconchegante, a ideia de sair para comprar mais e mas e max e maaaaaaa bebidas.  Eram quase duas da manhã. Toda a nossa capacidade de avaliar a sensatez de qualquer ideia que seja já tinha esvaído-se junto dos nossos respectivos amores próprios. Então, saímos sem pestanejar, e sem rumo - pois que raios de loja estaria aberta naquele horário... (?)

          Caprichosamente pelas ruas quase desertas, flagramo-nos imersos em assuntos que transcendiam  qualquer sentido. Paul falava algo sobre todos nós sermos dejetos alienígenas, e todos achavam, então, revoltante não terem-nos ensinado na escola, essa tal verdade inquietante e incontestável. Jackson resmungava um tímido discurso socialista para nosso amigo Anthony, que tinha aparecido por ali, repentinamente. A conversa bagunçada desenrolava-se no enrolar de mais charro. O nosso objetivo tinha sido esquecido. Sem novidades.

          Já não importava o horário. O tempo estava passando diferente. A doce e deleitosa fumaça misturava-se com a neblina densa, contrastando lindamente com aquela noite de sonhos e tentações libertadoras. Corríamos em marcha lenta.

          Passou uma negra com um corpo hipnotizante, que parecia ter um movimento único. Meus olhos encaravam-na, disparando, no meu interior, uma reação em cadeia inevitável  e que tinha auge imprevisível - às vezes, eu pensava, e ainda penso, com a cabeça do pau... Como um animal que fareja uma fêmea no cio, pronta para o bombardear de sua imponência viril - de diferentes graus, que por vezes pode decepcionar -, senti-me obrigado por meu próprio ego chapadão como uma caricatura hippie setentista, à assoviar e soltar qualquer besteira convencida. Qualquer palavra cuspida. Em troco, recebi uma mostra de dedo. Depois do feminismo as coisas ficaram mais difíceis. Pelo menos eu desfrutei um pouco daquela falsa inflada de ego.

          Um violão nos acompanhava, fazendo, como um velho amigo, com que todos abrissem os corações sem vomitar mentiras, e nem palavras melosas. A trilha sonora refletia, com o bom e velho blues - que não era lá tão bom vindo de branquelos da classe média-baixa, como nós -, toda a nossa essência, ao mesmo tempo em que caprichosamente contrastava com  a energia da noite, que ia aos poucos mudando seu tom, sua vida.

            A noite estava se preparando para a sua iminente morte. Enfim chegou o momento em que o sol começava a brigar ferozmente com o brilho noturno, e o céu tornou-se lindamente opaco. Era hora de voltar ao nosso ponto de encontro.

          Foi uma caminhada enigmática -  de um jeito indescritível, na verdade - e cheia de conversas e encontros esquisitos. Já soava como a mencionada noite gigantesca. Isso significava, portanto, que a amizade entre Paul e o resto do grupo também já soava como se fosse de longa data.

          OS POUCOS DESCENTES que passavam por nós, faziam expressões de insegurança explícita, o que, provavelmente, faziam por verem nossas expressões do tipo imponente contrastando com as suas. Presunção pura. Medo. A escória, em contrapartida, simplesmente nos ignorava - provavelmente por perceberem pouco "desnível" entre nós, e eles. Também saíamos da sarjeta.

          Tendo voltado à nossa casa - a casa de Jackson, na verdade -, nosso amigo Douglas permanecia deitado no mesmo lugar, na mesma posição de quando saímos. Ele já tinha fugido da realidade o bastante naquele dia. No ponto de nossa volta, o mesmo aplicava-se à nós cinco. A conversa estendeu-se até  a seleção natural definir o último que apagaria, rendendo-se novamente aos sonhos inconscientes. David dormiu com um dos olhos abertos, como se estivesse esperando por um daqueles golpes covardes que corriqueiramente recebemos ao longo da vida.

          EU SOBREI;;;;;;;;.........

          Eram umas 7 (sete) horas da manhã de domingo. Eu era um daqueles poucos loucos de mundo que, ou já estavam de pé - apenas esperando mais um pouco de descanso intelectual -, daqueles que encaixam-se no "RESTO". Eu era uma sobra. Todos nós já fomos - ou vamos ser - parte do resto. Que J.C ajude quem nunca tiver tal experiência. Em partes, eu sempre gostei disso. O resto é a beleza que não é polida.

          Saí em silêncio. Todos continuavam seus sonhos. Eu apenas estava preparando-me para voltar para a realidade que definira como a "principal", junto daquilo que me fora empurrado. Mas antes, eu precisava de uma longa caminhada, embaixo do sol ardente, para que o choque e a realização batessem em mim através dos raios e do cansaço. Me livrar de tudo o que era ruim, sabendo que tudo voltaria... Sabendo que eu precisaria fugir novamente para sonhar. Sabia que voltaria ali, ao refúgio dos sonhos. Fazia parte de mim. SONHAVA. Todos precisamos sonhar.

          Hoje, finalmente recordando, reparo que, mesmo sentindo nostalgia, eu me dei conta de que aquele refúgio, aquele lugar tão apreciado por nós, era, na mais plena e doída verdade, apenas um quarto branco qualquer, num apartamentinho simples qualquer, num bairro decadente qualquer... O que o tornava motivo de tanto prazer era a significância, o peso, que dávamos à ele: Um conjunto mágico de paredes brancas, com uma porta abridora de mentes que estava sempre aberta.  

Postagens mais visitadas