Amor de uma noite (conto)



         Não importam os detalhes exatos de onde e de como a encontrei, tampouco de como comecei a nossa primeira conversa - além de que eu nem ao menos chego a me lembrar ou a me importar com isso agora, olhando para o passado. Só importa que me vem à cabeça a imagem do bar. A imagem em questão não me vem à mente com perfeita nitidez, todavia, enxergo o suficiente para saber que aquilo acontecera num fim de tarde qualquer em um bar qualquer com alguns gatos pingados moribundos os quais o mundo quase nunca sequer se dá conta de que realmente existem, pois estes costumam passar seus preciosos dias e sombrias noites bebendo água que passarinho algum jamais beberia, e lamentando-se para o copo que nem ao menos lhes pertence.

          Estava eu sentado em uma banqueta de madeira - daquelas tradicionais dos podres, sujos e indecentes bares que vagabundos pobres e pessoas que se cansam facilmente dos engomadinhos julgando-as terrivelmente o tempo todo, costumam frequentar - quando quase que instintivamente, me vi conversando com aquela moça que tinha mais ou menos a mesma idade que eu na época - não me lembro ao certo qual idade, mas pode-se considerar que éramos jovens jogando nossos futuros dentro de privadas fedidas de vômito grosso. Deus... Éramos apenas dois jovens sem esperança alguma, que de alguma forma haviam se encontrado naquela espelunca e que simplesmente começaram a conversar sobre qualquer besteira que provavelmente nenhum dos dois jamais se lembraria - exceto por fragmentos duvidosos - no dia seguinte.

          Tudo me parecia ainda mais intrigante e triste quando eu analisava o fato de que ela era uma moça, e se encontrava no mesmo nível de depravação - tudo bem, pode ser que eu esteja aumentando demais o caso, entretanto, é fato que ela também estava vagando nos trilhos lambuzados de merda - que eu: um rapaz que perdera o emprego na época por conta da maldita crise econômica (nada fácil para os publicitários que não eram velhacos no ramo) e que passara quase metade da vida afogando as mágoas em drinques baratos, e que já se cansara de todos esses desonestos riquinhos que me cercavam oferecendo empregos na esperança de que eu me vendesse por completo para babacas e falsos comunistas apenas pelo fato do desemprego ter corroído boa parte da minha dignidade. Enfim... Naquele final de tarde - que felizmente pareceu ter durado dias -, eu finalmente me sentia bem por ter encontrado alguém com boceta que podia ao menos entender meus incansáveis lamentos de bêbado impertinente.

          Perturbador era mesmo a facilidade com que a paixão instantânea havia mutuamente nos atingido. Olhei para aquela mulher de beleza peculiar - sempre tive gosto um pouco diferente dos meus conhecidos e falsos amigos em relação ao que as mulheres aparentam em seus corpos viajantes e delicados. Observei-a girar e girar. Aliás, não sei se fui eu ou foi ela quem girou... Ela tinha grandes olhos castanhos que me faziam penetrar e vidrar por segundos - antes de tudo girar novamente; seu cabelo agora foge um pouco de minha sequelada memória... Mas acho que era (sinceramente, eu quero que seja) comprido até a cintura e castanho como tronco de pinheira, fazendo leves e delicadas curvas - cachos - nas extremidades; uma mulher branca e de estatura mediana, na qual seus carnudos e rosados lábios - do tipo que dão vontade de morder até extrair o néctar doloroso e precioso daquela triste alma feminina - e os seios fartos disputavam a atenção do malditos, como eu que naquele fim de tarde turvo, se dariam ao "luxo" de abordá-la.

          Me recordo que, em dado um ponto de nossa confusa e arrastada conversa movida pelo álcool - qualquer coisa barata, não se esqueça da minha lamentável situação financeira naquele estágio -, eu interrompi seu tolo argumento sobre qual o papel dos imigrantes na nossa economia capitalista (nenhum de nós sabia ao certo o que estava falando):

          - Desculpa, querida... Vou pedir mais uma. A noite está só começando, e não posso perder mais alguns dos seus argumentos. Você brilha enquanto fala. Preciso de mais uma dose dessa porcaria com maracujá. Marco! - chamei o meu velho amigo do qual eu não sabia muito, mas que de mim muito sabia e estava meio que farto de toda a ladainha - Me trás mais uma porcaria de maracujá com álcool. Esses drinques tropicais baratos ainda não conseguiram me derrubar.

          Marco respondeu-me com seu linguajar tosco de costume, que me fazia sentir em casa... Ó triste, porém aconchegante casa:

          - Pois não, chefe. Pelo menos hoje você tem alguém para conversar, ao invés de me encher de lamentos babacas. Espero que se lembre pelo menos de pagar dessa vez - encheu meu copo, e generosamente deixou a garrafa no balcão, pois sabia que eu era o único insensato que bebia aquilo -. Aproveite sua dose.

         Agradeci-o fazendo o meu típico sinal com a cabeça. Voltei meu olhar aos olhos da minha deliciosa moça de maquiagem borrada:

         - Então... Você tem um cheiro tão marcante, que mesmo nesta confusão de aromas - E realmente, aquele lugar fedia como a real mistura de fumaça, urina, álcool e tristeza sem fim - consigo sentir e desfrutar, com vontade de ignorar sua fala e mergulhar em seu cangote.

         - Tu falas muito bem pra um bêbado num fim de mundo. Parece pronto pra escrever. Também parece que não é daqui. Alguma coisa faz parecer que tu não é real. Fala tanto, e fala bonito demais. Dá vontade de mergulhar da tua boca e sentir as palavras me engolirem. - respondeu-me brilhantemente.

         - Eu sou só um desempregado que morou muito tempo na devastadora selva de pedra. Publicitários precisavam ler muito. Escrevia propagandas na minha firma... Escrevia um pouco na escola, também. Sou, e sempre fui um daqueles bêbados românticos que consomem cultura inútil em todas as oportunidades. Não desperdiço nada de inútil. Eu sempre me dei bem com as palavras... Mas de pouco me adiantou. Agora, o mundo cobra o valor das minhas dívidas mundanas, pois sou um daqueles talentos talentos que se afogam na desilusão - novamente eu caíra num daqueles papos de bêbado insolente nos quais Marco acabara de de se referir, quando me dei conta de que estava levando a conversa para um ponto morto... então mudei o rumo -. Mas foi você quem acabou de usar um linda metáfora.

         - Não sei do que tu tás falando, mas é uma pena. Dá vontade de rir... E de chorar junto contigo. Sei lá.

         - Também não sei.

         Entornei minha dose, e senti minha língua se contorcer e ficar dormente dentro de minha boca. Dali em diante, meu corpo não sentira mais nada além de um confuso prazer. Então, não lembro mais dos nossos bobos diálogos, visto que daquele ponto em frente, nossas falas embriagadas já pareciam como falsas atuações de atores ruins num teatro ruim.

         Todavia, como o bom cafajeste que há muito eu aprendera como ser - e que até naquela época, e um pouco depois, ainda não atingira maturidade suficiente para deixar de agir como -, recordo quase nitidamente do nosso primeiro beijo. O beijo embriagado e com gosto de amarguras fundindo-se na tentativa de extrair nossa doçura. Nossas bocas secas não pareciam incômodo algum, já que nossas línguas dormentes eram prazerosas e incontroláveis... Incrivelmente incontroláveis, deslizavam com linda liberdade. Ela era canhota - naquele bar, naquele momento, sem problemas. Linda canhota. Não tão linda, na verdade... Mas ali, era a única que me confortava e parecia reluzir em uma carícia tão intensa como o que nos queimava o estômago internamente. Todas aquelas horas de conversa e desejo que antecederam o beijo, na verdade haviam sido apenas duas intermináveis.

         Em relâmpagos que se alternam gradativamente em minha precoce sequela - comum para quem tinha aquele tipo de segunda casa durante tanto tempo -, o que surge-me nesta hora é a lembrança do táxi que nem ao menos sei se paguei (pouco me importa, como em tantas outras ocasiões de displicência), assim com lembranças da nossa entrada naquele motel nojento o qual eu nem ao menos lembrava de como conhecia - apenas chegara lá milagrosamente, guiado pelo nosso amigo taxista - um cara que já estava farto desses malditos vindos do happy hour (ironicamente, sem emprego, então, o triste happy our - péssimo trocadilho) que faziam o seu banco de trás testemunhar merdas fétidas e nojentas e quem sabe, ele pudesse ser um daqueles sádicos que têm prazer com amaços os fedorentos alheios.

         A culpa não existia na hora... E nem veio tão cedo. Até pelo motivo de eu também ser um bêbado depravado, que não sabia ao menos desamarrar os próprios velhos e encardidos sapatos. Não sinto culpa quando lembro-me da imagem (que poderia ser pintada por algum artista de rua talentoso, um daqueles talentos perdidos)... A imagem dela estarrada naquela velha cama semi-pública, totalmente despida. Seus seios lindos e proporcionais pareciam me chamar. A expressão em seu rosto era enigmática - ao menos em meu ponto de vista, naquela situação -, por demonstrar uma neutralidade entre felicidade e tristeza (não se tinha como decifrar ao certo). Seus olhos tristes me chamavam para acariciá-la de modo apaixonado, porém com resquícios de indecisão e falsidade. Apesar disso, sem culpa.

         Em meio aos lençóis amarelados - que um dia, provavelmente já foram brancos -, entrelacei-me com aquela quase desconhecida, enchendo-a de falso ego, enquanto a minha solidão de bêbado se esvaía de forma mentirosa e passageira - assim como acontecia com a felicidade engarrafada. Depois de ter sua bênção em meu bom e velho falo, penetrei-a de modo com que nos tornamos um único indivíduo. Enquanto tudo girava, o prazer aumentava. # Não posso esquecer da pausa para um trago, com as gotas ácidas escorrendo pelos meus lábios e percorrendo nossos corpos... Já não sabia o que era suor e o que não era # Tornei-me mais homem ao enchê-la por completo do meu mais quente e puro afago.

          Depois, só me lembro de despertar com o infernal barulho da vizinhança daquele lugar o qual nem sabia ao certo onde era. # Daí em diante, tudo parece muito mais claro em minha atual memória # E todo o barulho parecia infernal, com aquela devastadora ressaca. O sol entrava por uma fresta da janela. Era verão, e o sol era intimidador naqueles tempos... Especialmente com toda aquela dor que eu estava sentindo em minhas pupilas. Sentia uma quentura no meio das minhas pernas. Meu velho amigo havia feito um imponente e cansativo trabalho, digno de orgulho. Então me dei conta que aquela moça já não estava mais lá. O som da torneira aberta me atraiu para o banheiro: A torneira ligada na água quente (que não funcionava naquela espelunca), e o chão coberto por vômito. Meu vômito. - É óbvio que eu conhecia meu próprio vômito. Um bêbado conhece seu próprio vômito... - Me lembrei de algo sobre eu fazer oral e sair correndo para expelir aquele mal do meu corpo, enquanto ela permanecia ali, me esperando com um sorriso no rosto - ela nem ao menos sabia o que estava fazendo -, e claro, eu retornara ainda mais glorioso, mesmo estando em um estado deplorável.

          A questão é que a moça que havia me feito apaixonar por toda a sua petulância e energia cativante - além da capacidade paranormal de me acompanhar nos drinques vagabundos e raciocínio ilógico, todavia intrigante - na noite passada, não estava mais naquele motel de quinta categoria. Ela havia saído mais cedo e ido embora sozinha neste lugar escondido no meio de uma cidadezinha decadente. Eu, mais um vez, havia fodido com tudo (se entende o trocadilho babaca)... Dormi demais. Motivo tolo o suficiente para me fazer merecer um belo sermão sobre qualquer assunto envolvendo os riquinhos que não suporto. Dormir demais e deixá-la ir era motivo suficiente para me fazer voltar para aquele monte de vagabundos pobres e pessoas que se cansam facilmente dos engomadinhos julgando-as terrivelmente o tempo todo, tomar um belo porre para preencher meu vazio com o líquido dos deuses de valhalla, e ficar enchendo o saco do bom e velho com Marco, na tentativa de esquecer toda essa incapacidade de manter um relacionamento.

          Nu, procurei por minhas roupas. Quando achei-as, fiquei feliz por não ter perdido algo mais que minha vergonha, como acontecera algumas vezes antes. Tirei dos bolsos tudo aquilo que eu ainda tinha guardado, na esperança de não ter feito nenhuma asneira que tenho ocasionado na perda de nada importante. Celular, chaves, maço de cigarros, esqueiro, carteira (com apenas 35 pratas os cartões - cheios de dívidas, e prontos para contrair ainda mais, naquele mesmo dia) e algumas moedas. Então, fiquei um pouco mais tranquilo, recebendo um pouco de ganância humana. Quando recuperei-me de meus pensamentos distantes, procurei por qualquer sinal - mais especificadamente, algum bilhete - deixado pela minha companheira da noite anterior. Tudo o que encontrei foi uma pequena poesia que eu mesmo escrevera para ela - reconheci minha caligrafia de bêbado -, em um guardanapo sujo e amaçado, quando ainda estávamos no bar. Não lembrava - e ainda não lembro - de ter escrito aquilo, mas assim dizia:


"Escrevo poemas para quem quero amar
E também para quem quero me apaixonar.
Mas será que posso mesmo escolher?
Será?

Vil, posso lhe desmascarar,
Ver suas facetas e te mostrar
A imponência de uma paixão de quem não tem dó
De apaixonar-se por qualquer fracassada
Por uma noite só. "


          Hoje, meu único arrependimento é ter escrito esses maldosos versos. Receio que naquela ocasião, ela nem ao certo sabia diferenciar maldade de sinceridade... Grande sorte. Até hoje, nem mesmo eu consigo diferenciar o que sentia quando escrevi tão toscos e afiados versos. O que me recordo é de me vestir, enfiar a porcaria do guardanapo no bolso, como se fosse o único objeto para recordar-me daquele triste amor de uma só noite, e sair sem saber qual era meu rumo. Só sabia que Marco me esperava. O sol brilhava. Eu estava com a conta tendo 50 pratas a menos, e com a estranha sensação de vazio chegando de novo. Nunca mais encontrei-a... Nem sequer lembro-me do formato do seu rosto - somente de seus olhos grandes, penetrantes e repletos de histórias, e sua expressão indefinível - nem lembro de sua voz. Simplesmente tento desenterrar tais fatos de minhas profundas sequelas, e novamente me frustro.

          Sei que tudo passa. Sei que pessoas passam por nossa vida, como atores em um filme. Ela passou. Marco passou. Todas aquelas pessoas que me faziam rir em meus gloriosos dias também passaram. E, na nossa inconstância, nas nossas fases, há diferentes reações dependendo do momento em que estamos enfrentando. Naquele momento, eu só precisava de uma máquina de datilografar, de uma garrafa de vodca vagabunda e daquele pouco de dignidade que ainda não havia deixado meu corpo. O problema é que eu não tinha mais a máquina de datilografar.

          Amei-a naquelas horas em que estivemos unidos. Amei-a naquela noite tanto quanto hoje eu amo minha esposa. Mas de um jeito diferenciado. Minha esposa me salvou... Literalmente. Talvez aquela moça da qual não me lembro o nome tenha me salvado também... Nunca se sabe o que poderia ter acontecido. Sei que ela também me amou. Ela me amou naquela noite. Mas tudo passou, como o efeito de uma droga. A felicidade, de forma magnífica, se mesclara com a tristeza, e tudo fora inquietantemente confuso. Tudo se mesclara com tudo naquele pequeno mundo dos fracassados em que eu e ela vivíamos miseravelmente naqueles longínquos dias.

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